Como fica o mundo do trabalho após a covid-19
A tecnologia é uma saída para a recuperação de emprego e renda depois da pandemia, mas desde que não acentue as desigualdades
Quinta-feira, 30 de Abril de 2020 -
Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo
Melhores condições de trabalho e redução da jornada para 8h eram as principais bandeiras que levaram a um estopim de manifestações em Chicago, em 1886. Era 1º de maio, dia em que empresas iniciavam seu ano contábil. Protestos, greve e explosões culminariam, em 11 de novembro do ano seguinte, na Black Friday de então, assim chamada devido ao enforcamento de manifestantes.
O mundo do trabalho jamais seria o mesmo, mas o sufoco estaria longe de acabar. Ganhar a vida por meio do próprio esforço em condições dignas era só uma das batalhas. O que aqueles trabalhadores não poderiam imaginar é que a história reservaria episódios de destruição em massa dos próprios empregos, com guerras, depressão econômica, revoluções tecnológicas e pandemias provocadas por estruturas microscópicas.
Entre as pandemias mais recentes, a atual destaca-se pelo elevado grau de incerteza - o pior elemento para a tomada de qualquer decisão, seja no enfrentamento da crise nos dias de hoje, seja nos planos para a economia voltar a respirar e trazer novo fôlego aos empregos no período pós-covid-19.
Ainda se sabe pouco do vírus e seus efeitos no corpo humano e na sociedade. Há riscos de novas ondas de contaminação em países já recuperados e de retomada econômica mais lenta se persistirem políticas de relaxamento do isolamento social em lugares onde nem chegaram ao pico de contágio. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que o pior está por vir na América Latina, enquanto cidades brasileiras se apressam em reabrir shopping centers. As incertezas vão além da covid-19, com o risco de surgirem doenças à medida que o ser humano avança sobre hábitats de animais silvestres.
O Índice Mundial de Incerteza Pandêmica, criado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Universidade Stanford, mostra uma curva assustadoramente ascendente da covid-19 quando comparada com Sars, ebola, Mers, gripes aviária e suína. Enquanto a maioria esteve abaixo de 1 e a Sars passou um pouco de 4, a covid-19 quase bate os 14. O índice, que abarca 143 países desde 1996, revela uma contagem de vezes em que a palavra “incerteza” é relacionada a “epidemia” ou “pandemia” nos relatórios sobre países da Economist Intelligence Unit.
Enquanto isso, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta para a subestimação de seus dados, diante de incertezas na evolução da doença e das medidas tomadas para mitigar impactos. Neste mês, a segunda edição de seu monitor sobre o impacto da pandemia no trabalho dava conta de 2,7 bilhões de pessoas afetadas, ou 81% da força de trabalho mundial. Do total de trabalhadores, 38%, ou 1,25 bilhão de pessoas, pertencem a setores que enfrentam declínio severo na produção e alto risco de desligamento.
No Brasil, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estima três cenários para 2020, sendo o pessimista com aumento de 4,4 milhões no número de desocupados, o intermediário com 2,3 milhões e o otimista com 1,1 milhão de novos desempregados. Já o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) projeta taxa de desemprego de 17,8% neste ano.
“Cenários têm sido cautelosos porque ninguém sabe ainda o tamanho da catástrofe”, afirma José Pastore, sociólogo e professor da FEA-USP. A condução da crise pelo governo joga mais ingredientes de instabilidade sobre o ritmo de recuperação no Brasil, que dependerá de uma concertação nacional, com eficaz liderança do Executivo. Mas no lançamento do Pró-Brasil, plano anunciado pela Casa Civil para combater efeitos econômicos da pandemia, já houve desalinhamento entre o Ministério da Infraestrutura, que defende investimento público, e o da Economia, que não participou de sua execução e reafirmou o cumprimento do teto de gastos. No início da semana foi congelado pelo presidente da República. A saída estrondosa de Sergio Moro do Ministério da Justiça só agravou o quadro. Há, portanto, três crises geradoras de instabilidade: a sanitária, a econômica e a política.
“O Estado precisará cumprir o papel de organizar a lógica da recuperação e alinhar as expectativas. Incertezas levam as pessoas a tomar decisões individuais. Mas a soma de decisões individuais em tempos de crise não leva para a superação da crise, e sim para o caos”, diz Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese. “Este 1º de Maio será diferente, a gente sabe que o mundo mudou, mas não sabe para onde vai”, diz o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Há diversas previsões de consultorias sobre empregos que seriam beneficiados em detrimento de outros, habilidades favorecidas e tecnologias que vieram para ficar. A Bain & Company, por exemplo, listou mundialmente os setores que cresceram e devem se manter em alta: tecnologias que permitem trabalho remoto, entretenimento on-line, nutrição e saúde, telemedicina, planos de saúde e seguro de vida. Já os que cresceram, mas devem se estabilizar no longo prazo, são alimentação por “delivery”, internet banda larga e produtos de higiene. Em recuperação lenta estarão academias de ginástica, o setor de eventos, cinema, teatro, restaurantes, viagens e turismo.
Mas Guilherme Dietze, assessor econômico da Fecomercio-SP, ressalva que a renda poderá cair de tal forma que as pessoas não terão dinheiro para o e-commerce nem para a comida por aplicativo. “O efeito será danoso até para quem acha que está vendo na tecnologia uma oportunidade na crise.” A organização trabalha com a estimativa de queda do PIB em 2020 equivalente à soma dos anos de recessão de 2015 e 2016. O FMI estima queda de 5,3% neste ano.
Entre as certezas que a pandemia produziu, algumas tornam o cenário brasileiro mais dramático ao expor suas fragilidades: a informalidade, a invisibilidade de milhões de pessoas, a desigualdade no acesso a tecnologia e o fosso na educação. Mas também tem levado a sociedade a questionar políticas restritivas ao investimento público. “O Estado, que estava em baixa na visão dos tomadores de decisão e da própria população, voltou a estar em alta. Ao mesmo tempo, a restrição orçamentária piorou, levando a uma situação paradoxal: as pessoas vão querer mais Estado, mas o Estado poderá menos”, afirma Neri. Para ele, o governo precisa tratar com carinho a reestruturação econômica, especialmente com política de microcrédito e inovação para reerguer os negócios, olhando o futuro.
Ao chamar atenção para a vulnerabilidade de países da América Latina e do Caribe, o Banco Mundial, por meio do relatório “The Economy in the Time of Covid-19”, afirma que o conselho padrão na presença de choques adversos é proteger os trabalhadores, não os empregos, pois a maioria dos choques afeta empresas, setores ou locais específicos. Mas o banco salienta que não é o caso desta crise: “Esse conselho não se aplica quando um choque econômico afeta todo mundo ao mesmo tempo. Além de considerações sociais, as relações entre empregador e empregado, que voltariam a ser lucrativas quando a economia voltasse ao normal, podem ser dissolvidas permanentemente devido ao choque. O capital humano do trabalho pode ser perdido, o que dificultará a retomada da produção mais tarde, na medida em que a crise recuar”.
Diante disso, a organização recomenda o apoio a empregos e empresas em duas frentes. A primeira, a importantes empregadores ou exportadores, em setores como logística e serviços públicos, que possibilitam outras atividades econômicas. A segunda, a empresas que empregam uma parcela maior de mulheres e grupos socialmente desfavorecidos.
Dietze não vê como preservar empresas e empregos sem que haja melhora rápida na liquidez. Segundo ele, o crédito não está chegando na ponta, levando os pequenos e médios varejistas a executar demissões. Ele explica que, embora tenha havido redução no depósito compulsório dos bancos, estes aumentaram a aversão ao risco por causa da inadimplência, preferindo guardar os recursos a emprestar. Assim, defende que o Tesouro garanta parte dos empréstimos, o que ajudaria a manter as empresas vivas para cumprir a folha de pagamento e honrar aluguéis. Parte dessa garantia seria compensada com a menor queda na arrecadação de impostos. “É um cálculo que o governo deveria fazer.”
Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) nega, por meio de sua assessoria de imprensa, que haja empoçamento de liquidez por parte dos bancos e dificuldade de acessar os recursos ou negociar dívidas por parte dos clientes. A entidade informa que, de 16 de março a 17 de abril, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú e Santander concederam R$ 266 bilhões em crédito, volume que considera renegociações e operações novas para grandes, médias, pequenas e micro empresas, além de pessoas físicas e setor rural. E que as novas concessões de empréstimo, no valor R$ 177 bilhões, somadas ao alívio de caixa de R$ 22,2 bilhões com suspensão de parcelas, já injetaram R$ 199,2 bilhões de novos recursos na economia.
Para Neri, as reações iniciais em relação à crise foram lentas porque o script do Brasil era de ajuste fiscal. “Temos que esquecer da dívida pública, mas é preciso lembrar que, depois, ela virá com tudo.” Segundo estimativas recentes do Tesouro Nacional, a dívida pública caminha para R$ 600 bilhões, ou 85% do PIB. “O Brasil vai ter de pagar isso ao longo de anos”, diz Pastore.
Já o professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ João Saboia enfatiza: “Dívida pública não se paga, se financia. Desde que o setor privado esteja disposto a refinanciá-la, não há problema. Ela só não pode crescer descontroladamente”. Ele vê neste momento de juros baixos oportunidade de refinanciamento, com investimentos públicos em infraestrutura e serviços - como portos, saneamento, saúde - que ajudem o governo a sinalizar ao setor privado que está empenhado em reconstruir o futuro da economia e dos empregos.
Pensar em déficit agora é algo fora de propósito, na visão de Fausto Augusto Junior, do Dieese. “Em uma guerra você não faz conta, você gasta. Emite título, emite moeda, faz o que precisa fazer, e joga isso no longo prazo. Foi o que o mundo fez no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Até porque gastar agora terá um custo menor do que não gastar, o que levaria a maior quebradeira de empresas, fim de empregos e mais mortes.” O ponto, para ele, não é o déficit em si, mas como os agentes econômicos o encaram. Como muitos países estão gerando dívida, tende-se a olhar menos o tamanho do déficit e mais as perspectivas de aquele país sair da crise.
Em crises anteriores, como na abertura comercial dos anos 1990, que gerou demissão em massa, a informalidade era um colchão que mal ou bem absorvia o impacto das demissões, como lembra Naercio Menezes Filho, professor titular do Insper e professor associado da FEA-USP. Mas, desta vez, não há escapatória: os informais - 41,4% da população, segundo o IBGE - são os mais afetados pelo isolamento social e se concentram na parcela mais pobre da população. Ao mesmo tempo, são os que têm mais dificuldade de se beneficiar das oportunidades que a tecnologia oferece, como o trabalho remoto.
“Grande parte da população brasileira trabalha em situação de baixa qualificação. São vendedores em lojas, restaurantes, bares, trabalhadores domésticos, motoristas, seguranças. Com isso, a desigualdade vai aumentar tremendamente dentro do país e entre países também, com efeitos dramáticos naqueles em desenvolvimento”, diz Menezes.
A corrida tecnológica já era apontada como divisor capaz de acentuar desigualdades entre pessoas e países, à medida que parte da população não tem acesso às ferramentas. Com a pandemia, que aumentou a digitalização de atividades, a desigualdade pode expandir, criando classe de pessoas aptas a explorar os adventos da tecnologia até para melhorar a formação e reinventar carreiras, e outra alijada das oportunidades, vivendo num mundo quase analógico.
Semanas antes de a pandemia se instalar no Brasil, Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, já alertava que o modelo em andamento, com diminuição do trabalho formal e o “fazer por conta própria”, tinha potencial de gerar exclusão. Uma coisa é a pessoa preparada, com boa formação e acesso às ferramentas digitais lançar-se em empreendimento ou startup. Outra é a pessoa sem preparo, que vai tentar se virar com trabalhos improvisados na falta de um emprego formal.
Com a pandemia, esse quadro se acentua, na sua opinião. “Quando há crise - e esta é claramente uma das maiores dos últimos tempos --, ela não só gera desemprego como muito menos gente volta a ter o mesmo emprego ou algo semelhante ao que tinha no período pré-crise”, diz Claudia. A automação impõe mais velocidade às mudanças. “Novos postos de trabalhos serão gerados, mas para nível de competência mais sofisticado. O avanço da inteligência artificial [IA] sobre profissões de nível superior, como medicina, advocacia, jornalismo, não vai substituí-las, mas vai demandar habilidades mais avançadas.” Sua preocupação é que o Brasil não entrega sequer as competências básicas, como interpretação de texto e raciocínio matemático. “Somos um país de não leitores, inclusive entre as elites.”
Nessa linha, Neri reforça que nos últimos cinco anos o Brasil já sofria com deterioração trabalhista, processo de “uberização” dos empregos, desigualdade em alta e renda em queda. “A covid-19 será um salto a mais nessa direção. O futuro chegará mais rápido com a tecnologia, deixando para trás a população sem acesso a escolaridade e digitalização”, afirma.
Claudia, que já foi integrante da Comissão Global do Futuro do Trabalho, afirma que se o Brasil quiser se preparar para a recuperação da economia, além de fazer políticas sociais compensatórias, terá de incorporar no aprendizado essas novas habilidades, inclusive a de aprender a aprender. Um avanço, a seu ver, foi a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, que incluiu a formação digital como uma das competências básicas, de modo a preparar tanto os alunos como os professores a navegarem com mais desenvoltura no mundo interconectado.
A primeira barreira a se quebrar é a da exclusão digital, que atinge cerca de 30% dos alunos. “Mas não basta conectar as escolas na internet, é preciso criar uma cultura digital dentro do setor educacional.” Para ela, essa cultura, com maior uso de ferramentas virtuais, pressupõe uma forma mais colaborativa de resolver problemas complexos e de se conectar com o mundo.
Ela cita um exemplo próprio: a cada dois ou três dias, participa de um “webinário” internacional para lidar com a questão da suspensão de aulas em 174 países e compartilhar práticas para garantir o aprendizado remoto. “Conectar diferentes países dessa forma é algo inédito. Antes havia seminários, aí você viajava, levava um dia e meio para chegar, um dia e meio para voltar, lia ‘papers’. Algum nível de conexão já existia, mas nunca com essa velocidade e intensidade.”
Também antes de a pandemia se alastrar, a fluência digital já tinha sido apontada pelo Fórum Econômico Mundial como competência-chave no mundo do trabalho. Grazi Mendes, que chefia a área de pessoas da ThoughtWorks, consultoria global de tecnologia para desenvolvimento de software, define fluência digital como a capacidade humana de usar a tecnologia para potencializar aquilo que precisamos fazer. “Se não era uma competência até ontem adquirida por boa parte dos profissionais, passou a ser imposta. Talvez esta seja a grande diferença entre o mundo pré e o pós-pandemia. Seremos obrigados a falar essa língua, independentemente de já estarmos fluentes ou não”, afirma.
Grazi rechaça o antagonismo trabalho versus tecnologia, como se as máquinas fossem substituir os humanos neste momento em que mais se precisa proteger os empregos. O caminho seria evitar a preposição “ou” e usar mais “e”. Ela vê um futuro mais híbrido, composto de tecnologia e pessoas, trabalho presencial e distribuído, feito remotamente em modelos colaborativos. “O ponto é: como posso usar os recursos digitais para fazer com que eu tenha pessoas do mundo inteiro trabalhando engajadas em um projeto?”
Em vez de ameaçadora, ela vê a inteligência artificial como oportunidade de criar valor em plena crise. “Usar a IA para reduzir custos e substituir funções é o pior uso que se pode fazer dela.” Já uma boa aplicação é usá-la para responder questões complexas formuladas pelas pessoas, de modo a gerar benefícios para as empresas e para a sociedade. Isso requer boa capacidade não só de formular as perguntas, mas de traduzir as respostas e aplicá-las à realidade. Segundo Grazi, quem faz isso são os tradutores de inteligência artificial - profissão emergente. Mas um desafio é encontrar talentos para atuar com as inovações digitais, o que atribui, em grande parte, ao sexismo que afasta as mulheres de profissões ligadas à tecnologia, alijando um enorme contingente de potenciais trabalhadoras.
Segundo Pastore, foi dito na última reunião do Fórum Econômico Mundial, no início do ano, que seria inconclusivo discutir se a novas tecnologias iriam construir ou destruir mais empregos. O único consenso é que vão transformar substancialmente os empregos e trabalhos atuais. Além disso, países com taxas de desemprego historicamente baixas são intensivos em tecnologia, educação, qualificação e formação continuada de profissionais. “As várias entidades empresariais no mundo já se convenceram de que o ajuste da força de trabalho só se resolverá por uma conjugação entre escola e empresa. Um ou outro sozinho não consegue. Elas estipularam como meta requalificar 1 bilhão de trabalhadores entre 2020 e 2030”, afirma.
Claudia Costin defende mudanças na educação brasileira para que haja aplicações mais práticas do conhecimento na vida profissional e também um maior diálogo entre a formação técnica e potenciais empregadores. “Nas escolas do Senai, por exemplo, é mais orgânica a relação do aluno com o setor produtivo.” Isso ajuda na formação e na absorção da mão de obra.
A Alemanha, segundo Pastore, é citada como exemplo porque desde o pós-Guerra adotou o ensino dual. É um sistema em que o adolescente alterna dias de presença na escola e na empresa, onde estagia. Em países como Alemanha, Áustria e os escandinavos, cerca de 50% dos adolescentes fazem ensino técnico profissional. No Brasil, onde se valoriza mais o bacharelado, são apenas 8%. Um dos poucos exemplos no Brasil, segundo o professor, é o Movimento Santa Catarina Pela Educação, que congrega 260 empresas em parceria com o Sistema S para fazer qualificação e requalificação dos alunos.
E haja requalificação. Para se ter ideia, Osvaldo Lahoz Maia, gerente de inovação e tecnologia no Senai São Paulo, comenta que a velocidade da tecnologia é tão alta que aquilo que foi aprendido no primeiro ano de engenharia provavelmente não será útil ao fim do curso. “São perdidas 30% das competências durante os cinco anos do curso”, diz. O grande desafio dos sistemas de educação profissional é acompanhar a velocidade ditada pelas inovações digitais.
O gerente cita dados do WEF, de 2018, segundo os quais 85% das empresas mundiais mostravam intenção de investir em Big Data, 75% em internet das coisas e 73% em aprendizagem de máquinas e computação em nuvem. Enquanto isso, no Brasil, a tecnologia esteve fora do radar das empresas paulistas, pelo menos segundo pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) de 2018. As grandes preocupações, em disparado, eram tributação e burocracia, seguidas por crédito para capital de giro e investimentos. Já tecnologia para indústria 4.0 ocupava o 13º lugar no ranking.
Com as mudanças provocadas pelo isolamento, o Senai reequipou a carteira de produtos para ofertar ensino a distância. Já são 450 mil matrículas anuais no Estado paulista. Mas a mudança mais profunda por trás disso, segundo Maia, é o desenvolvimento de “soft skills”, habilidades sociais e capacidade de trabalhar em equipe. “Resolver problemas complexos em grupo, pensar no todo em vez de nas partes: tudo isso vai assumindo proporções muito maiores. Como cinco pessoas, por exemplo, vão trabalhar ao mesmo tempo em um documento on-line se não sabem se comunicar socialmente?”
Com entendimento mais amplo do conceito de tecnologia, o empreendedor Igor Botelho, fundador da Wegenerate Life, plataforma que atua com alimentos “plant based” e agricultura regenerativa, diz acreditar em mudança profunda do mercado de trabalho e da própria organização econômica, por meio de crescente descentralização das atividades. “Tecnologia para mim não é algo necessariamente focalizado na área digital, mas algo que serve para observar o problema e criar soluções, em vez de gerar novas demandas.” Assim, ele diz acreditar que o caminho para a recuperação econômica está em se espelhar na estrutura em rede pela qual a própria natureza se organiza, que é descentralizada, interconectada e, por isso, resiliente.
Para Botelho, o trabalho remoto que as pessoas fazem por causa do isolamento social está em padrão hierarquizado. “A gente ainda vai passar para o trabalho descentralizado remoto e distribuído. E o próximo estágio é chegar a uma atividade econômica distribuída, que também descentraliza o poder”, diz.
Moedas sociais, bancos de sementes em que produtores fazem trocas para não depender de meia dúzia de fornecedores globais e bancos de horas são exemplos de tecnologias que ele vê crescendo em países onde já morou, como Estados Unidos, Inglaterra e Nova Zelândia. No banco de horas, o tempo de todo mundo vale 1, seja a hora do advogado, do padeiro ou do professor de música, e as trocas são feitas entre as pessoas de forma voluntária. Para Botelho, em síntese, seria algo como passar de uma tecnologia “open source” para uma “open economy”, em que as pessoas, em comunidade, são capazes de interagir, criar e desenvolver outras ramificações econômicas para solucionar seus problemas e os da sociedade.
Para Grazi Mendes, a humanidade tem espaço para refletir e recriar sua forma de estar no mundo com poucos precedentes. “As discussões que a gente vinha tendo sobre o futuro do trabalho nas empresas estavam vinculadas a uma sociedade da exaustão. Havia o Brasil como segundo país do mundo em casos de ‘burnout’, muita gente com a sensação de trabalhar muito, em um mundo acelerado, mas com pouca produtividade e sem propósito de vida. Aí vem a covid-19 e joga tudo isso na nossa cara”, diz.
Voltar ao normal, como se diz sobre o período pós-covid, será um desperdício, na visão de Grazi. “A gente até pode, como indivíduo ou como organização, tentar sair disso do jeito que entrou, mas seria lamentável. É o momento de se perguntar: ‘Quem quero ser e que história quero contar por ter vivido este momento?’.” A sua sugestão é refletir ao menos sobre uma linha do livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo coreano Byung-chul Han: “Cada época possui as suas enfermidades fundamentais”. A deste 1º de Maio parece ser esta.
O mundo do trabalho jamais seria o mesmo, mas o sufoco estaria longe de acabar. Ganhar a vida por meio do próprio esforço em condições dignas era só uma das batalhas. O que aqueles trabalhadores não poderiam imaginar é que a história reservaria episódios de destruição em massa dos próprios empregos, com guerras, depressão econômica, revoluções tecnológicas e pandemias provocadas por estruturas microscópicas.
Entre as pandemias mais recentes, a atual destaca-se pelo elevado grau de incerteza - o pior elemento para a tomada de qualquer decisão, seja no enfrentamento da crise nos dias de hoje, seja nos planos para a economia voltar a respirar e trazer novo fôlego aos empregos no período pós-covid-19.
Ainda se sabe pouco do vírus e seus efeitos no corpo humano e na sociedade. Há riscos de novas ondas de contaminação em países já recuperados e de retomada econômica mais lenta se persistirem políticas de relaxamento do isolamento social em lugares onde nem chegaram ao pico de contágio. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que o pior está por vir na América Latina, enquanto cidades brasileiras se apressam em reabrir shopping centers. As incertezas vão além da covid-19, com o risco de surgirem doenças à medida que o ser humano avança sobre hábitats de animais silvestres.
O Índice Mundial de Incerteza Pandêmica, criado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Universidade Stanford, mostra uma curva assustadoramente ascendente da covid-19 quando comparada com Sars, ebola, Mers, gripes aviária e suína. Enquanto a maioria esteve abaixo de 1 e a Sars passou um pouco de 4, a covid-19 quase bate os 14. O índice, que abarca 143 países desde 1996, revela uma contagem de vezes em que a palavra “incerteza” é relacionada a “epidemia” ou “pandemia” nos relatórios sobre países da Economist Intelligence Unit.
Enquanto isso, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta para a subestimação de seus dados, diante de incertezas na evolução da doença e das medidas tomadas para mitigar impactos. Neste mês, a segunda edição de seu monitor sobre o impacto da pandemia no trabalho dava conta de 2,7 bilhões de pessoas afetadas, ou 81% da força de trabalho mundial. Do total de trabalhadores, 38%, ou 1,25 bilhão de pessoas, pertencem a setores que enfrentam declínio severo na produção e alto risco de desligamento.
No Brasil, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estima três cenários para 2020, sendo o pessimista com aumento de 4,4 milhões no número de desocupados, o intermediário com 2,3 milhões e o otimista com 1,1 milhão de novos desempregados. Já o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) projeta taxa de desemprego de 17,8% neste ano.
“Cenários têm sido cautelosos porque ninguém sabe ainda o tamanho da catástrofe”, afirma José Pastore, sociólogo e professor da FEA-USP. A condução da crise pelo governo joga mais ingredientes de instabilidade sobre o ritmo de recuperação no Brasil, que dependerá de uma concertação nacional, com eficaz liderança do Executivo. Mas no lançamento do Pró-Brasil, plano anunciado pela Casa Civil para combater efeitos econômicos da pandemia, já houve desalinhamento entre o Ministério da Infraestrutura, que defende investimento público, e o da Economia, que não participou de sua execução e reafirmou o cumprimento do teto de gastos. No início da semana foi congelado pelo presidente da República. A saída estrondosa de Sergio Moro do Ministério da Justiça só agravou o quadro. Há, portanto, três crises geradoras de instabilidade: a sanitária, a econômica e a política.
“O Estado precisará cumprir o papel de organizar a lógica da recuperação e alinhar as expectativas. Incertezas levam as pessoas a tomar decisões individuais. Mas a soma de decisões individuais em tempos de crise não leva para a superação da crise, e sim para o caos”, diz Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese. “Este 1º de Maio será diferente, a gente sabe que o mundo mudou, mas não sabe para onde vai”, diz o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social.
Há diversas previsões de consultorias sobre empregos que seriam beneficiados em detrimento de outros, habilidades favorecidas e tecnologias que vieram para ficar. A Bain & Company, por exemplo, listou mundialmente os setores que cresceram e devem se manter em alta: tecnologias que permitem trabalho remoto, entretenimento on-line, nutrição e saúde, telemedicina, planos de saúde e seguro de vida. Já os que cresceram, mas devem se estabilizar no longo prazo, são alimentação por “delivery”, internet banda larga e produtos de higiene. Em recuperação lenta estarão academias de ginástica, o setor de eventos, cinema, teatro, restaurantes, viagens e turismo.
Mas Guilherme Dietze, assessor econômico da Fecomercio-SP, ressalva que a renda poderá cair de tal forma que as pessoas não terão dinheiro para o e-commerce nem para a comida por aplicativo. “O efeito será danoso até para quem acha que está vendo na tecnologia uma oportunidade na crise.” A organização trabalha com a estimativa de queda do PIB em 2020 equivalente à soma dos anos de recessão de 2015 e 2016. O FMI estima queda de 5,3% neste ano.
Entre as certezas que a pandemia produziu, algumas tornam o cenário brasileiro mais dramático ao expor suas fragilidades: a informalidade, a invisibilidade de milhões de pessoas, a desigualdade no acesso a tecnologia e o fosso na educação. Mas também tem levado a sociedade a questionar políticas restritivas ao investimento público. “O Estado, que estava em baixa na visão dos tomadores de decisão e da própria população, voltou a estar em alta. Ao mesmo tempo, a restrição orçamentária piorou, levando a uma situação paradoxal: as pessoas vão querer mais Estado, mas o Estado poderá menos”, afirma Neri. Para ele, o governo precisa tratar com carinho a reestruturação econômica, especialmente com política de microcrédito e inovação para reerguer os negócios, olhando o futuro.
Ao chamar atenção para a vulnerabilidade de países da América Latina e do Caribe, o Banco Mundial, por meio do relatório “The Economy in the Time of Covid-19”, afirma que o conselho padrão na presença de choques adversos é proteger os trabalhadores, não os empregos, pois a maioria dos choques afeta empresas, setores ou locais específicos. Mas o banco salienta que não é o caso desta crise: “Esse conselho não se aplica quando um choque econômico afeta todo mundo ao mesmo tempo. Além de considerações sociais, as relações entre empregador e empregado, que voltariam a ser lucrativas quando a economia voltasse ao normal, podem ser dissolvidas permanentemente devido ao choque. O capital humano do trabalho pode ser perdido, o que dificultará a retomada da produção mais tarde, na medida em que a crise recuar”.
Diante disso, a organização recomenda o apoio a empregos e empresas em duas frentes. A primeira, a importantes empregadores ou exportadores, em setores como logística e serviços públicos, que possibilitam outras atividades econômicas. A segunda, a empresas que empregam uma parcela maior de mulheres e grupos socialmente desfavorecidos.
Dietze não vê como preservar empresas e empregos sem que haja melhora rápida na liquidez. Segundo ele, o crédito não está chegando na ponta, levando os pequenos e médios varejistas a executar demissões. Ele explica que, embora tenha havido redução no depósito compulsório dos bancos, estes aumentaram a aversão ao risco por causa da inadimplência, preferindo guardar os recursos a emprestar. Assim, defende que o Tesouro garanta parte dos empréstimos, o que ajudaria a manter as empresas vivas para cumprir a folha de pagamento e honrar aluguéis. Parte dessa garantia seria compensada com a menor queda na arrecadação de impostos. “É um cálculo que o governo deveria fazer.”
Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) nega, por meio de sua assessoria de imprensa, que haja empoçamento de liquidez por parte dos bancos e dificuldade de acessar os recursos ou negociar dívidas por parte dos clientes. A entidade informa que, de 16 de março a 17 de abril, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú e Santander concederam R$ 266 bilhões em crédito, volume que considera renegociações e operações novas para grandes, médias, pequenas e micro empresas, além de pessoas físicas e setor rural. E que as novas concessões de empréstimo, no valor R$ 177 bilhões, somadas ao alívio de caixa de R$ 22,2 bilhões com suspensão de parcelas, já injetaram R$ 199,2 bilhões de novos recursos na economia.
Para Neri, as reações iniciais em relação à crise foram lentas porque o script do Brasil era de ajuste fiscal. “Temos que esquecer da dívida pública, mas é preciso lembrar que, depois, ela virá com tudo.” Segundo estimativas recentes do Tesouro Nacional, a dívida pública caminha para R$ 600 bilhões, ou 85% do PIB. “O Brasil vai ter de pagar isso ao longo de anos”, diz Pastore.
Já o professor emérito do Instituto de Economia da UFRJ João Saboia enfatiza: “Dívida pública não se paga, se financia. Desde que o setor privado esteja disposto a refinanciá-la, não há problema. Ela só não pode crescer descontroladamente”. Ele vê neste momento de juros baixos oportunidade de refinanciamento, com investimentos públicos em infraestrutura e serviços - como portos, saneamento, saúde - que ajudem o governo a sinalizar ao setor privado que está empenhado em reconstruir o futuro da economia e dos empregos.
Pensar em déficit agora é algo fora de propósito, na visão de Fausto Augusto Junior, do Dieese. “Em uma guerra você não faz conta, você gasta. Emite título, emite moeda, faz o que precisa fazer, e joga isso no longo prazo. Foi o que o mundo fez no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Até porque gastar agora terá um custo menor do que não gastar, o que levaria a maior quebradeira de empresas, fim de empregos e mais mortes.” O ponto, para ele, não é o déficit em si, mas como os agentes econômicos o encaram. Como muitos países estão gerando dívida, tende-se a olhar menos o tamanho do déficit e mais as perspectivas de aquele país sair da crise.
Em crises anteriores, como na abertura comercial dos anos 1990, que gerou demissão em massa, a informalidade era um colchão que mal ou bem absorvia o impacto das demissões, como lembra Naercio Menezes Filho, professor titular do Insper e professor associado da FEA-USP. Mas, desta vez, não há escapatória: os informais - 41,4% da população, segundo o IBGE - são os mais afetados pelo isolamento social e se concentram na parcela mais pobre da população. Ao mesmo tempo, são os que têm mais dificuldade de se beneficiar das oportunidades que a tecnologia oferece, como o trabalho remoto.
“Grande parte da população brasileira trabalha em situação de baixa qualificação. São vendedores em lojas, restaurantes, bares, trabalhadores domésticos, motoristas, seguranças. Com isso, a desigualdade vai aumentar tremendamente dentro do país e entre países também, com efeitos dramáticos naqueles em desenvolvimento”, diz Menezes.
A corrida tecnológica já era apontada como divisor capaz de acentuar desigualdades entre pessoas e países, à medida que parte da população não tem acesso às ferramentas. Com a pandemia, que aumentou a digitalização de atividades, a desigualdade pode expandir, criando classe de pessoas aptas a explorar os adventos da tecnologia até para melhorar a formação e reinventar carreiras, e outra alijada das oportunidades, vivendo num mundo quase analógico.
Semanas antes de a pandemia se instalar no Brasil, Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, já alertava que o modelo em andamento, com diminuição do trabalho formal e o “fazer por conta própria”, tinha potencial de gerar exclusão. Uma coisa é a pessoa preparada, com boa formação e acesso às ferramentas digitais lançar-se em empreendimento ou startup. Outra é a pessoa sem preparo, que vai tentar se virar com trabalhos improvisados na falta de um emprego formal.
Com a pandemia, esse quadro se acentua, na sua opinião. “Quando há crise - e esta é claramente uma das maiores dos últimos tempos --, ela não só gera desemprego como muito menos gente volta a ter o mesmo emprego ou algo semelhante ao que tinha no período pré-crise”, diz Claudia. A automação impõe mais velocidade às mudanças. “Novos postos de trabalhos serão gerados, mas para nível de competência mais sofisticado. O avanço da inteligência artificial [IA] sobre profissões de nível superior, como medicina, advocacia, jornalismo, não vai substituí-las, mas vai demandar habilidades mais avançadas.” Sua preocupação é que o Brasil não entrega sequer as competências básicas, como interpretação de texto e raciocínio matemático. “Somos um país de não leitores, inclusive entre as elites.”
Nessa linha, Neri reforça que nos últimos cinco anos o Brasil já sofria com deterioração trabalhista, processo de “uberização” dos empregos, desigualdade em alta e renda em queda. “A covid-19 será um salto a mais nessa direção. O futuro chegará mais rápido com a tecnologia, deixando para trás a população sem acesso a escolaridade e digitalização”, afirma.
Claudia, que já foi integrante da Comissão Global do Futuro do Trabalho, afirma que se o Brasil quiser se preparar para a recuperação da economia, além de fazer políticas sociais compensatórias, terá de incorporar no aprendizado essas novas habilidades, inclusive a de aprender a aprender. Um avanço, a seu ver, foi a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, que incluiu a formação digital como uma das competências básicas, de modo a preparar tanto os alunos como os professores a navegarem com mais desenvoltura no mundo interconectado.
A primeira barreira a se quebrar é a da exclusão digital, que atinge cerca de 30% dos alunos. “Mas não basta conectar as escolas na internet, é preciso criar uma cultura digital dentro do setor educacional.” Para ela, essa cultura, com maior uso de ferramentas virtuais, pressupõe uma forma mais colaborativa de resolver problemas complexos e de se conectar com o mundo.
Ela cita um exemplo próprio: a cada dois ou três dias, participa de um “webinário” internacional para lidar com a questão da suspensão de aulas em 174 países e compartilhar práticas para garantir o aprendizado remoto. “Conectar diferentes países dessa forma é algo inédito. Antes havia seminários, aí você viajava, levava um dia e meio para chegar, um dia e meio para voltar, lia ‘papers’. Algum nível de conexão já existia, mas nunca com essa velocidade e intensidade.”
Também antes de a pandemia se alastrar, a fluência digital já tinha sido apontada pelo Fórum Econômico Mundial como competência-chave no mundo do trabalho. Grazi Mendes, que chefia a área de pessoas da ThoughtWorks, consultoria global de tecnologia para desenvolvimento de software, define fluência digital como a capacidade humana de usar a tecnologia para potencializar aquilo que precisamos fazer. “Se não era uma competência até ontem adquirida por boa parte dos profissionais, passou a ser imposta. Talvez esta seja a grande diferença entre o mundo pré e o pós-pandemia. Seremos obrigados a falar essa língua, independentemente de já estarmos fluentes ou não”, afirma.
Grazi rechaça o antagonismo trabalho versus tecnologia, como se as máquinas fossem substituir os humanos neste momento em que mais se precisa proteger os empregos. O caminho seria evitar a preposição “ou” e usar mais “e”. Ela vê um futuro mais híbrido, composto de tecnologia e pessoas, trabalho presencial e distribuído, feito remotamente em modelos colaborativos. “O ponto é: como posso usar os recursos digitais para fazer com que eu tenha pessoas do mundo inteiro trabalhando engajadas em um projeto?”
Em vez de ameaçadora, ela vê a inteligência artificial como oportunidade de criar valor em plena crise. “Usar a IA para reduzir custos e substituir funções é o pior uso que se pode fazer dela.” Já uma boa aplicação é usá-la para responder questões complexas formuladas pelas pessoas, de modo a gerar benefícios para as empresas e para a sociedade. Isso requer boa capacidade não só de formular as perguntas, mas de traduzir as respostas e aplicá-las à realidade. Segundo Grazi, quem faz isso são os tradutores de inteligência artificial - profissão emergente. Mas um desafio é encontrar talentos para atuar com as inovações digitais, o que atribui, em grande parte, ao sexismo que afasta as mulheres de profissões ligadas à tecnologia, alijando um enorme contingente de potenciais trabalhadoras.
Segundo Pastore, foi dito na última reunião do Fórum Econômico Mundial, no início do ano, que seria inconclusivo discutir se a novas tecnologias iriam construir ou destruir mais empregos. O único consenso é que vão transformar substancialmente os empregos e trabalhos atuais. Além disso, países com taxas de desemprego historicamente baixas são intensivos em tecnologia, educação, qualificação e formação continuada de profissionais. “As várias entidades empresariais no mundo já se convenceram de que o ajuste da força de trabalho só se resolverá por uma conjugação entre escola e empresa. Um ou outro sozinho não consegue. Elas estipularam como meta requalificar 1 bilhão de trabalhadores entre 2020 e 2030”, afirma.
Claudia Costin defende mudanças na educação brasileira para que haja aplicações mais práticas do conhecimento na vida profissional e também um maior diálogo entre a formação técnica e potenciais empregadores. “Nas escolas do Senai, por exemplo, é mais orgânica a relação do aluno com o setor produtivo.” Isso ajuda na formação e na absorção da mão de obra.
A Alemanha, segundo Pastore, é citada como exemplo porque desde o pós-Guerra adotou o ensino dual. É um sistema em que o adolescente alterna dias de presença na escola e na empresa, onde estagia. Em países como Alemanha, Áustria e os escandinavos, cerca de 50% dos adolescentes fazem ensino técnico profissional. No Brasil, onde se valoriza mais o bacharelado, são apenas 8%. Um dos poucos exemplos no Brasil, segundo o professor, é o Movimento Santa Catarina Pela Educação, que congrega 260 empresas em parceria com o Sistema S para fazer qualificação e requalificação dos alunos.
E haja requalificação. Para se ter ideia, Osvaldo Lahoz Maia, gerente de inovação e tecnologia no Senai São Paulo, comenta que a velocidade da tecnologia é tão alta que aquilo que foi aprendido no primeiro ano de engenharia provavelmente não será útil ao fim do curso. “São perdidas 30% das competências durante os cinco anos do curso”, diz. O grande desafio dos sistemas de educação profissional é acompanhar a velocidade ditada pelas inovações digitais.
O gerente cita dados do WEF, de 2018, segundo os quais 85% das empresas mundiais mostravam intenção de investir em Big Data, 75% em internet das coisas e 73% em aprendizagem de máquinas e computação em nuvem. Enquanto isso, no Brasil, a tecnologia esteve fora do radar das empresas paulistas, pelo menos segundo pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) de 2018. As grandes preocupações, em disparado, eram tributação e burocracia, seguidas por crédito para capital de giro e investimentos. Já tecnologia para indústria 4.0 ocupava o 13º lugar no ranking.
Com as mudanças provocadas pelo isolamento, o Senai reequipou a carteira de produtos para ofertar ensino a distância. Já são 450 mil matrículas anuais no Estado paulista. Mas a mudança mais profunda por trás disso, segundo Maia, é o desenvolvimento de “soft skills”, habilidades sociais e capacidade de trabalhar em equipe. “Resolver problemas complexos em grupo, pensar no todo em vez de nas partes: tudo isso vai assumindo proporções muito maiores. Como cinco pessoas, por exemplo, vão trabalhar ao mesmo tempo em um documento on-line se não sabem se comunicar socialmente?”
Com entendimento mais amplo do conceito de tecnologia, o empreendedor Igor Botelho, fundador da Wegenerate Life, plataforma que atua com alimentos “plant based” e agricultura regenerativa, diz acreditar em mudança profunda do mercado de trabalho e da própria organização econômica, por meio de crescente descentralização das atividades. “Tecnologia para mim não é algo necessariamente focalizado na área digital, mas algo que serve para observar o problema e criar soluções, em vez de gerar novas demandas.” Assim, ele diz acreditar que o caminho para a recuperação econômica está em se espelhar na estrutura em rede pela qual a própria natureza se organiza, que é descentralizada, interconectada e, por isso, resiliente.
Para Botelho, o trabalho remoto que as pessoas fazem por causa do isolamento social está em padrão hierarquizado. “A gente ainda vai passar para o trabalho descentralizado remoto e distribuído. E o próximo estágio é chegar a uma atividade econômica distribuída, que também descentraliza o poder”, diz.
Moedas sociais, bancos de sementes em que produtores fazem trocas para não depender de meia dúzia de fornecedores globais e bancos de horas são exemplos de tecnologias que ele vê crescendo em países onde já morou, como Estados Unidos, Inglaterra e Nova Zelândia. No banco de horas, o tempo de todo mundo vale 1, seja a hora do advogado, do padeiro ou do professor de música, e as trocas são feitas entre as pessoas de forma voluntária. Para Botelho, em síntese, seria algo como passar de uma tecnologia “open source” para uma “open economy”, em que as pessoas, em comunidade, são capazes de interagir, criar e desenvolver outras ramificações econômicas para solucionar seus problemas e os da sociedade.
Para Grazi Mendes, a humanidade tem espaço para refletir e recriar sua forma de estar no mundo com poucos precedentes. “As discussões que a gente vinha tendo sobre o futuro do trabalho nas empresas estavam vinculadas a uma sociedade da exaustão. Havia o Brasil como segundo país do mundo em casos de ‘burnout’, muita gente com a sensação de trabalhar muito, em um mundo acelerado, mas com pouca produtividade e sem propósito de vida. Aí vem a covid-19 e joga tudo isso na nossa cara”, diz.
Voltar ao normal, como se diz sobre o período pós-covid, será um desperdício, na visão de Grazi. “A gente até pode, como indivíduo ou como organização, tentar sair disso do jeito que entrou, mas seria lamentável. É o momento de se perguntar: ‘Quem quero ser e que história quero contar por ter vivido este momento?’.” A sua sugestão é refletir ao menos sobre uma linha do livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo coreano Byung-chul Han: “Cada época possui as suas enfermidades fundamentais”. A deste 1º de Maio parece ser esta.
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