VALOR ECONÔMICO -SP - 24/02/2017
A China exporta mais para os EUA do que os EUA para a China. Isso deixa o
presidente americano, Donald Trump, furioso - tão furioso que ele pode
estar disposto a iniciar uma guerra comercial por causa disso.
Trump
tem feito ameaças protecionistas contra a China. Ao tentar consolidar
sua Presidência, é improvável que ele volte atrás em suas intenções. E
com o 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês a ser realizado
em novembro em Pequim, é improvável que os líderes chineses cedam à
pressão dos EUA.
Uma guerra comercial sem dúvida
prejudicaria ambos os lados. Mas há razões para acreditar que os EUA têm
mais a perder. Os chineses parecem saber que armas têm à sua
disposição.
Embora as políticas de Trump sejam ruins para a
China no curto prazo, elas podem proporcionar o ímpeto de que a China
necessita para deixar de subsidiar suas exportações e parar de perpetuar
distorções na sua economia. Ela pode emergir da era de Trump melhor do
que antes
A China poderia parar de comprar aviões
americanos, impor um embargo aos produtos de soja americanos e
desfazer-se de títulos do Tesouro dos EUA e outros ativos financeiros
americanos. As empresas chinesas poderiam reduzir sua demanda por
serviços administrativos empresariais americanos e o governo poderia
persuadir as empresas a não comprarem produtos americanos. A maior parte
das vendas anuais das numerosas empresas na lista Fortune 500 vêm da
China, atualmente - e elas já se sentem cada vez mais indesejadas.
Além
de ser o segundo parceiro comercial mais importante dos EUA, a China é o
principal gerador de empregos nos EUA. Uma guerra comercial poderia,
portanto, custar milhões de empregos aos EUA. Se a China deixasse de
comprar da Boeing e passasse a fazê-lo da Airbus, por exemplo, os EUA
perderiam cerca de 179 mil postos de trabalho. Uma redução dos serviços
administrativos empresariais contratados nos EUA custariam outros 85 mil
empregos. As regiões produtoras de soja - por exemplo, no Missouri e no
Mississipi - poderiam perder cerca de 10% dos empregos locais se a
China suspendesse as importações.
Além disso, embora os
EUA exportem menos para a China do que o contrário, é a China que
controla componentes-chave nas cadeias de suprimento mundiais e nas
redes de produção. Considere o iPhone. Embora a China contribua com
apenas 4% do valor agregado, os chineses fornecem os componentes
principais para a Apple a preços baixos. A Apple não tem como construir
um iPhone a partir do zero nos EUA, e por isso teria de buscar
fornecedores alternativos, aumentando consideravelmente seus custos de
produção. Isso daria às empresas chinesas fabricantes de smartphones uma
oportunidade para abocanhar fatias dos principais participante no
mercado.
Hoje 80% do comércio mundial compreende cadeias
de suprimento internacionais. O declínio dos custos comerciais permitiu
que as empresas fragmentassem suas linhas de produção geograficamente,
resultando em bens processados e valor agregado em vários países ao
longo da cadeia. Se a China lançar um punhado de areia nas engrenagens
dessas cadeias, isso poderia transtornar redes de produção inteiras,
causando sérios danos aos EUA (e, de fato, a todos os países que delas
participam).
Uma escalada da guerra comercial, em que cada
lado erguesse barreiras simétricas a importações, alimentaria pressões
inflacionárias nos EUA, levando o Fed (Federal Reserve, banco central
dos EUA) a elevar os juros mais rapidamente do que em outras
circunstâncias. Isso, juntamente com perspectivas de crescimento
reduzidas, deprimiria os mercados de ações, e o declínio do emprego e da
renda familiar poderia resultar em considerável queda do PIB tanto nos
EUA quanto na China.
Um cenário mais provável, entretanto,
é que ambos os países iniciariam disputas em setores específicos,
especialmente em setores industriais tradicionais, como a produção de
ferro e aço. Entrementes, Trump continuará a acusar a China de manipular
sua taxa de câmbio, ignorando a recente pressão descendente sobre o
yuan (o que indica que a moeda estava, na realidade, sobrevalorizada),
para não mencionar o simples fato de que muitos governos intervêm para
administrar seu câmbio.
Tanto o Japão quanto a Suíça
praticaram intervenções cambiais diretas nos últimos anos e os próprios
EUA poderão muito bem fazer o mesmo, quando o forte impacto do dólar na
competitividade das exportações americanas tornar-se insustentável. De
todo modo, a China provavelmente pode esquecer suas aspirações ao
"status de economia de mercado" sob as regras da Organização Mundial do
Comércio até que Trump esteja fora da Casa Branca.
O
confronto comercial entre os EUA e a China também afetará os fluxos de
investimentos bilaterais. Os EUA poderão citar preocupações de segurança
nacional para bloquear investimentos chineses. Também poderão impedir
compras governamentais de produtos de empresas chinesas como a Huawei e
obrigar empresas chinesas e pessoas ricas a reduzir investimentos que
até agora aqueceram os preços dos ativos americanos.
Um
tratado de investimentos bilaterais de alta qualidade entre os EUA e a
China criaria condições competitivas equânimes para as empresas
americanas, proporcionando a elas melhor acesso ao grande mercado
chinês. Mas essas conversações seriam invariavelmente postergadas, ao
passo que as disputas sobre direitos de propriedade intelectual e
segurança cibernética seriam reintensificadas.
Por
enquanto, os líderes chineses parecem convencidos de que têm pouca razão
para dobrarem-se à pressão dos EUA. Por um lado, Trump parece mais
preocupado com outras prioridades, como revogar o "US Affordable Care
Act", reformar o sistema tributário e investir em infraestrutura.
Mesmo
se uma guerra comercial acontecer, os líderes chineses supõem que ela
não seria sustentada por muito tempo, tendo em vista as perdas de renda e
emprego que ambas as partes sofreriam. De todo modo, eles não têm
nenhuma intenção de mostrar qualquer sinal de fraqueza perante um líder
tão empenhado em testar os limites de outros.
Nos últimos
cinco anos, a China procurou estabelecer um modelo de crescimento menos
dependente de exportações e mais dependente do consumo interno. Mas a
China necessita frequentemente uma crise ou choque externo para
impulsionar reformas. Talvez Trump seja esse choque. Embora suas
políticas sejam ruins para a China no curto prazo, elas também poderão
proporcionar o ímpeto de que a China necessita para deixar de subsidiar
suas exportações e parar de perpetuar distorções na economia doméstica.
Se isso acontecer, a China poderá efetivamente emergir da era de Trump
em melhor condição do que antes. (Tradução de Sergio Blum)
Keyu
Jin, professora de economia na London School of Economics, é parte do
Jovens Líder Global no Fórum Econômico Mundial e membro do Conselho
Consultivo do Grupo Richemont. Copyright: Project Syndicate, 2017.
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