VALOR ECONÔMICO - 10/02/2017
A hiperinflação rondou o Brasil por mais de uma década após a crise da
dívida externa (1980-83). A escassez de moeda forte, fragilidade fiscal e
baixa confiança tornavam instável a economia e provocavam episódios
recorrentes de desvalorização aguda da taxa de câmbio. Esses episódios
impulsionavam a inflação que, por sua vez, se realimentava pela
indexação geral de preços, títulos, contratos. Para evitar catástrofes,
os governos deflagravam "planos" heterodoxos de congelamento.
Foram
seis intervenções malogradas, do Plano Cruzado (1986) ao Plano Collor
II (1991), com eficácia minguante. Com reservas parcas, o congelamento
do câmbio não aguentava muito tempo e a inflação surtava outra vez. O BC
tinha que correr atrás, subindo juros e, assim, voltava a
instabilidade. Até que em julho de 1994 veio o Plano Real.
Atento
para não repetir os mesmos erros, o Real criou a nova moeda com
paridade inicial de um para um em relação ao dólar. Para dar força a
essa criação intrinsecamente frágil - dada a escassez de reservas -, a
taxa Selic foi fixada em nível nominal altíssimo
(41,2% ao ano), oferecendo aos investidores uma alternativa imbatível de
remuneração em títulos do Tesouro Nacional. Isto, na partida, surtiu
efeito e no curto prazo o real valorizou-se.
14 anos de Selic real muito alta enraizou no sistema financeiro uma "dependência viciosa" de juros altos
No
entanto, a política fiscal não ajudou (o superávit primário foi
insignificante no período 1994-1998) e espoucaram crises
cambiais-financeiras em várias regiões: México no 1º semestre de 1995;
Ásia (inclusive Coreia) em 1997; Rússia em 1998. Após o impacto negativo
da crise mexicana, o BC adotou um câmbio deslizante, com
minidesvalorizações previsíveis, de tal forma que em 12 meses a taxa de
câmbio era depreciada em montante igual à diferença entre a inflação
doméstica e a inflação externa em dólares. Visava-se ter taxa real de
câmbio estável e previsível como âncora-guia. As intempéries externas e a
falta de suporte fiscal obrigaram o BC a manter níveis altíssimos de
juros. De 1994 a 1998 a Selic nominal média foi de 33,5% ao ano e a Selic real média de 22%.
A
crise russa em meados de 1998 atropelou o Brasil. Reeleito, o governo
recorreu ao FMI e acordou, em novembro de 1998, um programa de US$ 41,5
bilhões. O câmbio deslizante foi abandonado com mudança no BC e uma nova
arquitetura para o Real instituiu o tripé de câmbio flutuante, metas de
inflação e política fiscal restritiva. O FMI condicionou seus
desembolsos a uma significativa elevação do superávit primário, que
entre 1999 e 2002 subiu para 3,6% do PIB. Em maio de 2000 o governo
sancionou a Lei de Responsabilidade Fiscal. Apesar do câmbio flutuante e
da melhoria fiscal, a Selic caiu parcialmente em termos reais, para 10% ao ano entre 1999 e 2002 (19,7% em termos nominais).
A
fragilidade cambial persistia e a ela se agregou outra fraqueza - a
ampla indexação da dívida pública: ao final de 1998, 71% dos títulos
federais estava indexados à Selic e 21% à taxa de
câmbio. Ou seja, 92% da dívida pública - contraparte direta do estoque
de riqueza privada - estavam protegidas de riscos, auferiam juros reais
elevados e usufruiam de pronta liquidez. Um verdadeiro nirvana para o
rentismo.
Sob essas condições, e com déficit nominal de
4,5 a 5% do PIB entre 2000 e 2003, o BC ficou refém do mercado para
rolar a dívida bruta. Registre-se que a equipe do primeiro governo Lula
aumentou o superávit primário para 4,3% do PIB e reduziu o déficit
nominal para 3%. Registre-se também a rápida redução dos títulos
públicos indexados ao dólar, concomitantemente à acumulação de reservas
com base em crescente superávit comercial.
Mas, apesar desses ganhos, não se logrou reduzir significativamente a taxa de juros (a Selic real média caiu 8,9% entre 2004 e 2008 e a nominal para 14,8%). Esse longo período de 14 anos consecutivos de Selic
real muito alta, com persistência da indexação e da pronta liquidez dos
títulos públicos, enraizou profundamente no sistema financeiro uma
"dependência viciosa" de juros altos.
A
institucionalização do regime de juros altos com pronta liquidez
concentrou o estoque de poupança nacional em aplicações de maturidades
muito curtas e deformou a estrutura temporal dos juros. O Brasil é um
exceção gritante no mundo. Em um sistema normal as taxas de juros são
positivamente correlacionadas a prazos e riscos, enquanto aqui a
estrutura temporal é perversa: juros de curto prazo elevados e liquidez
dissociada dos prazos.
A severa recessão atual potencializou a queda da inflação e criou a oportunidade para acelerar a redução da Selic.
Para que essa redução seja definitiva e chegue a um patamar
efetivamente baixo será essencial restaurar o controle sobre o déficit e
sobre a trajetória do endividamento público o que, sabemos, depende do
avanço das reformas fiscal e previdenciária. Mas isso não será
suficiente.
O desafio de baixar substancialmente o patamar da Selic
vai além e requer a superação do círculo vicioso que retém o estoque de
poupança no curto prazo, líquido e bem remunerado, sem risco. Antes de
apontar o crédito direcionado como "culpado" será prudente avaliar como
superar o curtoprazismo e a liquidez incondicional, de forma a criar
funding longo para o sistema financeiro e para o mercado de capitais com
juros reais compatíveis com o crescimento sustentável. Sem tal
antecedente corre-se o risco de destruir bases e instituições que
asseguram a existência de financiamento de longo prazo sem colocar nada
no lugar.
Luciano Coutinho, economista, foi presidente do BNDES.
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