FSP - DANIEL BUARQUE ilustração ALEX KIDD 05/02/2017
RESUMO: Texto mostra como o imaginário estrangeiro sobre o Brasil não sofreu mudanças significativas desde o retrato feito pelos primeiros viajantes, no século 16. Sensualidade e exuberância natural continuam a ser as linhas mestras, agora acrescidas do diagnóstico de um ator político irrelevante na cena global.
http://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1855524-imaginario-sobre-o-brasil-no-exterior-permance-marcado-por-estereotipos.shtml
A
Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, dois eventos
pensados para projetar internacionalmente a imagem de um Brasil moderno e em
plena ascensão, acabaram atropelados pela realidade da crise no país. Mesmo que
ambos tenham sido relativamente bem-sucedidos, sem registros de incidentes
graves, a cobertura das competições acabou revelando o quanto o resto do mundo
ainda vê o Brasil sob o prisma de clichês e estereótipos, alguns deles formados
há séculos.
Um
levantamento realizado em 2014 no King's College de Londres revelou que 80% dos
registros da imprensa internacional usaram lugares-comuns para descrever o
país-sede da Copa. Outra pesquisa, feita na Universidade Goldsmith, mostrou que
a rede britânica BBC quadruplicou as menções ao Brasil durante a competição,
mas que o teor das notícias era predominantemente negativo, enfatizando os
problemas do país.
O
"Brazil bashing" (expressão em inglês que denota críticas incisivas e
reincidentes) se repetiu em 2016, quando a Olimpíada foi com frequência
descrita como uma grande festa que visaria a ofuscar as falhas de organização e
de estrutura da cidade-sede.
Por
mais que os dois eventos globais possam ser enquadrados em uma tentativa
moderna de trabalhar a marca internacional do Brasil e de promover sua
reputação no exterior, muito do que se pensa a respeito do país no resto do
mundo está preso a concepções talhadas séculos atrás.
Alguns
desses clichês, como o do espírito festeiro, surgiram apenas em meados do
século passado, enquanto o Brasil desenvolvia e consolidava sua identidade
nacional, mas estudos recentes na academia europeia indicam que parte das imagens
mais fortes do país no exterior nos dias atuais começou a integrar o repertório
do Velho Mundo desde pouco tempo depois da chegada dos portugueses por aqui,
nos séculos 16 e 17.
Segundo
pesquisadores que estudam alguns dos primeiros relatos a descrever o país, é
possível ver desde aquela época a construção da representação do Brasil que se
consolidou e que persiste até hoje.
O
exotismo e uma visão preconceituosa e superficial do Brasil como uma nação
aquém do desenvolvimento alcançado pelo Ocidente, bem como a associação do país
a noções como a de sensualidade, são percebidos pelo professor da Universidade
de Leiden, na Holanda, Michiel van Groesen, e pela pesquisadora brasileira
Vivien Kogut Lessa de Sá, da Universidade de Cambridge. Ambos estudam relatos
de europeus sobre o perímetro tropical nos primeiros séculos após a chegada dos
portugueses.
"Existe
uma dicotomia na forma como os europeus veem o Brasil atualmente",
explicou Van Groesen, autor do livro recém-lançado "Amsterdam's Atlantic:
Print Culture and the Making of Dutch Brazil" (Atlântico de Amsterdã: a
cultura impressa e a construção do Brasil holandês, University of Pennsylvania
Press), em entrevista à Folha. "Eles acreditam ter superado o
colonialismo, se acham modernos e ocidentalizados, enquanto o Brasil e o resto
da América Latina não lhes parecem bem preparados para o futuro", disse.
A
avaliação do pesquisador holandês se assemelha ao que sugerem estudos
internacionais sobre a reputação global do Brasil. Segundo as principais pesquisas
de "nation branding", como o Nation Brands Index e o ranking Best
Country, o país costuma ser bem avaliado em tópicos ligados a cultura,
sociedade, opções de turismo e lazer. O calcanhar de Aquiles está no
reconhecimento externo como nação séria, com relevância política e econômica
para o resto do planeta. Trata-se de um país "decorativo", nos termos
de um dos principais pesquisadores do tema, Simon Anholt.
Segundo
Van Groesen, o que se viu na imprensa europeia nos últimos dez anos é uma
confirmação disso. "São reportagens sobre corrupção, sobre a Copa do Mundo
não ter sido concebida de forma apropriada, sobre a Olimpíada desorganizada no
Rio. Essas ideias superficiais dominam a forma como os holandeses pensam o
Brasil", explicou. Para ele, é uma questão que vai além da ideia de
estereótipo; incorre-se pura e simplesmente no preconceito.
Van
Groesen aponta como marco zero da difusão desse equívoco as publicações da
imprensa europeia do século 17, sobre as quais se debruça há uma década –e que
deram origem ao livro que acaba de publicar. Ele estudou as descrições do
Brasil antes, durante e depois do período em que os holandeses dominaram o
Nordeste do país, entre 1630 e 1654.
alex kidd/Folhapress
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A
Holanda invadiu o Brasil por conta da disputa geopolítica durante sua guerra
contra a Espanha (então unida a Portugal). Navios do país zarparam para a
América orientados por conhecimentos sobre o território recém-descoberto
sacados sobretudo de relatos de franceses. Depois que conquistaram o Nordeste
brasileiro, no entanto, os holandeses buscaram conhecer o território melhor e
divulgar pelo resto da Europa o que descobriam na colônia.
"Eles
se interessavam extremamente pelas oportunidades que a paisagem local oferecia,
pela vegetação exótica, pelo potencial medicinal que poderia ser encontrado no
Brasil. Esse é o tipo de coisa que começa a chamar a atenção depois que a
disputa militar se consolida", diz Van Groesen.
BRASIL
NU
O
realce dado ao exotismo quando se perfila o Brasil na Europa prevalece até
hoje, segundo a professora Lessa de Sá, e já aparecia nos primeiros relatos de
portugueses e ingleses em viagem ao Brasil dos séculos 16 e 17.
"Hoje
ainda se salienta a 'proverbial beleza das mulheres brasileiras', a afabilidade
e a espontaneidade do povo, um ar singularmente relaxado e as onipresentes
belezas naturais. Ao lado disso, há um subtexto de bestialidade, de
primitivismo, que inspira encantamento e repulsa ao mesmo tempo", explica.
Para
ela, destacam-se as ideias batidas da hipersensualidade e da sexualidade, da
falta de vergonha, da extroversão alegre, de um certo descontrole, que aparece
desde a carta de Pero Vaz de Caminha. "Ficou um estereótipo que se
retroalimenta. Nos primeiros relatos, há uma ênfase enorme na
sensualidade", diz.
A
raiz desse arquétipo reside no choque produzido pelo encontro entre os europeus
e os habitantes da América tropical. A nudez do indígena, explica Lessa de Sá,
surpreende e deixa sua marca na forma como o Brasil é interpretado pelo resto
do mundo desde então.
Isso
acontece porque os europeus da época tinham no vestuário não apenas algo que
servia para "cobrir as vergonhas" mas o maior indicador de
identidade. "Para os europeus, uma sociedade despida significava uma
sociedade em que estavam ausentes os principais elementos ordenadores:
hierarquia, riqueza, controle", explica ela. A roupa designava gênero,
classe, profissão, nacionalidade, status social e idade.
"É
sintomático que esta seja a primeira impressão dos índios que se acha em quase
todos os relatos, desde Colombo: as primeiras palavras sobre os indígenas serão
sempre 'andam nus', seguidas da cor da pele.
Fica aí impressa, até hoje, a imagem de que uma das maiores características da América tropical é precisamente o seu despudor", afirma a professora.
Fica aí impressa, até hoje, a imagem de que uma das maiores características da América tropical é precisamente o seu despudor", afirma a professora.
Lessa
de Sá desenvolve há quase dez anos pesquisas que resultaram na coletânea de 12
relatos de viajantes ingleses que estiveram no Brasil entre os séculos 16 e 17
e descrevem o país nascente. O título do trabalho, ainda sem editora, é
"Viajantes Ingleses no Brasil: 1526-1608".
A
maioria desses relatos permanece desconhecida do público brasileiro. São cartas,
diários e outros depoimentos que descrevem o país e deixam entrever muito sobre
a forma de pensar e ver o mundo do próprio autor, enquanto ele narra eventos e
descreve características da nova terra.
Segundo
a pesquisadora brasileira, a imagem do Brasil transmitida pelos ingleses dessa
época se ancorava na riqueza natural da terra e no exotismo dos indígenas. Em
seguida, a tônica passa a ser o capital, leia-se, as promessas de riqueza no
comércio do açúcar e as notícias vagas sobre possibilidades de ouro –culminando
em uma atitude predatória, frequentemente acompanhada de verdadeiro ódio aos
portugueses, vistos como indignos de serem "donos da terra".
"Ao
contrário de outros relatos europeus dessa época muito mais conhecidos entre
nós, esses não envolvem uma leitura religiosa daquilo que é testemunhado",
compara a pesquisadora.
MÍDIA
EUROPEIA
Os
relatos produzidos por viajantes nos dois primeiros séculos após a chegada ao
Brasil gozavam de forte apelo junto ao público europeu, segundo Van Groesen.
Apesar de os megaeventos esportivos dos últimos anos serem tratados como uma
tentativa de atrair os holofotes de uma mídia internacional nem sempre
interessada pelo que acontece no Brasil, ele lembra que o país já havia sido
foco importante da imprensa europeia no período colonial.
"Se
você mencionasse a palavra Brasil entre os anos 1630 e 1650, todo mundo sabia
que fazia parte de uma grande disputa geopolítica entre protestantes e
católicos que vinha acontecendo na Europa havia décadas", diz o professor.
A
invasão do Nordeste pelos holandeses ensejou uma cobertura frenética sobre o
Brasil Colônia na imprensa baseada em Amsterdã. Como a cidade na época era um
dos centros de irradiação de conhecimento para a Europa, as descrições sobre o
Brasil ganhavam o continente. "Nos anos 1630, a cobertura holandesa
sobre o país era traduzida para o francês, para o alemão e para o inglês,
levando a história a uma audiência mais ampla", conta Van Groesen.
Esse
vívido interesse seria impulsionado pelas mãos de Maurício de Nassau, que
governou a província holandesa baseada em Pernambuco. "Ele queria que sua
visão positiva sobre o Brasil se espalhasse, e foi muito eficiente em fazer
isso não apenas na Holanda, mas em toda a Europa, por meio de pinturas,
descrições e tratados científicos."
A
parte intrigante –e decepcionante– dessa história, pondera o professor, é que
os europeus não estavam tão interessados nos habitantes indígenas dos trópicos,
em seus hábitos e práticas. Antes de tudo, viam o Brasil como um mero objeto a
ser explorado. Por isso é que os relatos pesavam a mão no exotismo, deixando de
lado menções a temas mais candentes da realidade local.
"Os
europeus não se interessavam em discutir a ascensão do tráfico de escravos, que
também é parte da história do Brasil Holandês. Essas reportagens, sobre
africanos e indígenas, não achamos na mídia holandesa da época", afirma
Van Groesen. "Já vemos ali os primórdios de uma concepção que privilegiava
os interesses europeus nas Américas, com silêncio significativo em relação a partes
da história tidas como dolorosas ou desumanas demais –ou simplesmente
irrelevantes."
Apesar
da ampla cobertura da imprensa holandesa por mais de duas décadas no século 17
e do trabalho de divulgação de Nassau, a Holanda não tardou em apagar de sua história
o período em que dominou o Nordeste –era uma forma de fugir da vergonha da
derrota para os portugueses e de esconder o que foi visto como um vexame, nas
palavras de Van Groesen.
"O
que mais encontro é a ignorância. Os holandeses hoje sabem muito pouco sobre o
Brasil, então a imagem não é muito bem definida. Além disso, veem a América
Latina como um território desprovido de proeminência na órbita política
internacional."
PRECONCEITO
A
desinformação a respeito da realidade brasileira e a combinação tóxica daquela
com o preconceito pautariam por séculos a conformação da "marca
Brasil".
Muito
antes de pesquisas do que se chama hoje de "nation branding" sobre a
reputação dos países no resto do mundo, os primeiros levantamentos realizados
nos Estados Unidos a respeito do Brasil e da América Latina, nos anos 1930 e
1940, aferiram "desconhecimento e ignorância impressionantes" a
respeito dos vizinhos de continente, segundo um relatório da época.
Com
o passar do tempo, as informações sobre o Brasil começaram a se espalhar com
mais celeridade –mas a intensificação desse fluxo não foi capaz de desarmar de
todo a coleção de clichês.
Segundo
o historiador britânico Leslie Bethell, a difusão de informações sobre o Brasil
cresceu no século 19 porque a divulgação internacional foi alçada a prioridade
do Império; a independência do gigante sul-americano precisava ser alardeada
nos quatro cantos do mundo.
Em
um estudo sobre o que se conhecia do Brasil no mundo no século 19, Bethell
indica que relatos de diplomatas, oficiais navais, naturalistas, exploradores,
missionários, jornalistas e viajantes que passavam pelo país se disseminavam em
forma de livros pela Europa e pelos Estados Unidos.
Enquanto
o pintor francês Jean-Baptiste Debret se consolidava na Europa como o principal
artista a retratar essas terras com seus volumes de "viagens pitorescas e
históricas", nos anos 1830, naturalistas como Alfred Russel Wallace e
Henry Walter Bates se empenhavam em ir além das cidades costeiras para conhecer
o lado mais selvagem da floresta na Amazônia.
Além
desses textos, a segunda metade dos anos 1800 foi marcada por participações
brasileiras em exposições internacionais, que buscavam vender ao mundo os
contornos de um país moderno –ainda assim, a natureza e o apelo exótico eram os
trunfos dos pavilhões tupiniquins.
O
Brasil esteve representado em Londres em 1862, em Paris em 1867, em Viena em
1873, na Filadélfia em 1876 e de volta a Paris em 1889, meses antes da
Proclamação da República.
Segundo
Bethell, nesta última o Brasil se apresentou como "grande império da
América do Sul" e foi tratado como uma nação "civilizada e
progressista", se comparada à realidade que existia então nos Estados
Unidos.
As
exposições, especialmente a de Paris em 1889, acabavam reciclando imagens
gastas do Brasil, mas o país ficava longe do tratamento depreciativo reservado
a colônias europeias, segundo a pesquisadora Heloisa Barbuy, da USP. Em vez de
ser associado a uma nação de humanos em estado primitivo, o Brasil era tratado
como um futuro gigante da economia mundial. Daí vêm os primeiros esboços da
ideia do Brasil como um "país do futuro".
A
virada para o século 20 também ampliou o espectro de olhares estrangeiros sobre
o Brasil; os EUA, ator então ascendente na cena global, também davam seus
pitacos.
Exemplo
disso foi "Nas Selvas do Brasil" (1914), livro escrito pelo
ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que embarcou numa expedição
científica de quase dois meses pela floresta tropical, acompanhando o coronel
Cândido Rondon. Ele buscava justamente o exotismo da selva inexplorada.
Na
obra, é possível perceber uma mistura entre a narrativa do Brasil exótico e uma
mais nova, de um Brasil moderno. Se por um lado o ex-presidente trata a grande
incidência de cobras venenosas como algo marcante no país, por outro ele
ressalta que já havia em São Paulo um instituto de pesquisas especializado em
desenvolver antídotos ao veneno desses répteis (o atual Butantan).
Ainda
assim, são os relatos da natureza insólita e selvagem que dominam o livro.
"Nenhum homem civilizado, nenhum homem branco, havia jamais navegado por
este rio ou visto o país pelo qual estávamos passando", contaria mais
tarde, ecoando o tom de desbravador dos primeiros relatos de europeus que
haviam chegado ao Brasil no século 16.
As
pesquisas de opinião pública sobre a América Latina realizadas décadas mais
tarde nos EUA ajudariam o governo local a definir políticas públicas para a
região vizinha –especialmente por conta da crescente ameaça da Segunda Guerra
Mundial. A mais reveladora dessas sondagens tentava descobrir o que os
norte-americanos pensavam e sabiam a respeito do resto do continente. Foram
ouvidas 4.220 pessoas em dezembro de 1940.
Quase
um terço dos entrevistados se disse incapaz de citar o nome de qualquer país da
América Latina. Entre os que conheciam os países do continente, o Brasil era o
mais mencionado –escolha de 43% dos ouvidos.
Além
do desconhecimento, a pesquisa mostrou a incidência de forte preconceito. Os
americanos "têm a ideia de que todos os sul-americanos são meio índios e
dormem a tarde inteira. Eles não percebem que os países têm vida industrial.
Imagino que a maioria das pessoas pensa que os sul-americanos dançam rumba em
vez de trabalhar", escreveu Hadley Cantril, um dos pesquisadores envolvidos
no projeto.
Cantril
se dizia preocupado com o arquétipo "altamente negativo" que os
americanos associavam aos vizinhos: "Algo como uma pitada de gigolô com
muitos elementos de preguiça, analfabetismo, atraso cultural e falta de
higiene".
Na
época, os próprios pesquisadores recomendavam um trabalho de comunicação de
massa para ajudar a divulgar informações e conhecimento sobre o continente.
No
século 21, a
hipertrofia da comunicação de massa diminuiu o nível de ignorância global a
respeito do Brasil. Nos últimos anos, o país tem aparecido em torno da 20ª
colocação em rankings que apontam as nações mais conhecidas e admiradas do
mundo, com base em pesquisas de opinião pública. Essa afeição internacional, no
entanto, ainda se apoia em um conjunto de estereótipos mais ou menos incômodos.
DANIEL BUARQUE, 35, é jornalista da Folha
ALEX KIDD, 31, designer da Folha, escreve no blog 120 BPM.
Colagens a partir de obras de Albert Eckhout
@política
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