terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Mundo vive onda de autoritarismo - Gideon Rachman, Financial Times

VALOR ECONÔMICO -SP  - 21/02/2017

Após a queda do Muro de Berlim houve uma "onda democrática". A liberdade política se espalhou a partir de seus bastiões na Europa ocidental e nos Estados Unidos, e países tão diferentes uns dos outros como Polônia, África do Sul e Indonésia acabaram se tornando democracias.
Mas, agora, o processo parece ter se invertido. Uma onda de autoritarismo, iniciada fora das democracias estabelecidas do Ocidente, está se espalhando pelos EUA e pela Europa.
O ressurgimento de atitudes e práticas autoritárias, que se manifestaram primeiro em democracias jovens como Rússia, Tailândia e Filipinas, se espalhou para a política ocidental. Polônia e Hungria têm governos com tendências autoritárias. O acontecimento mais dramático foi a eleição de um presidente americana que considera a livre imprensa como "o inimigo" e que tem pouco respeito por um Judiciário independente.
Essa onda autoritária ameaça subverter as suposições cômodas de como a política funciona. A crença de que as políticas das democracias ricas e estabelecidas do Ocidente são fundamentalmente diferentes das dos países da América Latina e da Ásia poderá ter de ser repensada. A ideia de que a classe média e os jovens sempre serão os defensores mais leais da democracia também parece cada vez mais instável.
O desgaste dos valores democráticos no Ocidente ficou delineado no ano passado em um artigo bastante discutido dos acadêmicos Roberto Foa e Yascha Mounk, redigido antes da eleição de Donald Trump. O artigo destacava o aumento dos sentimentos antidemocráticos nos EUA e na Europa. Um de seus pontos que mais chamou atenção é que hoje, um em cada seis americanos acha que seria uma boa ideia um "governo militar" - número que era de um em cada 16 em 1995.
Em enquanto mais de 70% dos americanos nascidos na década de 1930 acreditem ser "essencial" viver numa democracia, somente 30% dos nascidos na década de 1980 concordam com isso.
Está havendo uma declínio parecido, ainda que menos acentuado, na confiança nas instituições democráticas na Europa. Foa e Mounk concluíram que "nas últimas três décadas, a confiança em instituições políticas como o Parlamento ou as cortes de justiça caiu muito nas democracias estabelecidas da América do Norte e Europa Ocidental".
Foa e Mounk se concentram no Ocidente. Mas o renascimento do autoritarismo brando é ainda mais visível em países que já foram símbolos da onda democrática, como as Filipinas, que derrubaram o regime de Ferdinando Marcos em 1986, a Rússia, onde o governo do Partido Comunista acabou em 1991, e a África do Sul, que deu um fim ao apartheid em 1994.
Todos os três países mantêm elementos importantes da democracia, como as eleições. Mas eles estão vendo um desgaste das normas democráticas e a adoção de governos personalistas, o que vem permitindo o florescimento da corrupção.
Na Rússia, o colapso econômico e a anarquia dos anos 90 criaram as condições para um renascimento da autocracia sob Vladimir Putin. O presidente russo criou um modelo de autoritarismo brando, combinando nacionalismo, populismo, corrupção, repressão aos meios de comunicação e estreita aliança entre a Presidência e uma oligarquia rica. Pode não ser por um acaso que algumas das advertências mais articuladas contra o Trumpismo tenham sido feitas por dissidentes russos, como Garry Kasparov e Masha Gessen.
Rodrigo Duterte, o "homem-forte" presidente das Filipinas, tomou liberalmente de empréstimo o manual de Putin. Sua adoção de uma prática justiceira, com grupos de extermínio, horroriza os liberais filipinos, mas tem sido bem vista por um público assustado com o crime e as drogas. Duterte também conquistou o eleitorado jovem, que têm poucas lembranças da luta para estabelecer a democracia nas Filipinas.
O mesmo padrão está ameaçando a África do Sul. Na Presidência de Jacob Zuma houve um aumento da corrupção e crescente pressão sobre os meios de comunicação e ramos independentes do governo. Muitos sul-africanos liberais esperam que o fim dos anos de Zuma leve a um renascimento democrático. Mas as coisas poderão caminhar para o outro lado. Simon Freemantle, economista político sênior no Standard Bank, adverte que "o momento Trump na África do Sul está em gestação". Ele aponta pesquisas que mostra que a geração "nascida em liberdade" na África do Sul, que veio ao mundo após a libertação de Nelson Mandela, em 1990, é menos favorável à democracia do que as pessoas com lembranças da luta contra o apartheid. Há também um crescente apoio, na África do Sul, para deportações de imigrantes ilegais, como as preconizadas por Trump nos EUA.
O que há em comum na erosão da defesa da democracia em países tão diversos como Rússia, Filipinas, África do Sul e até mesmo os EUA? É que para muitos eleitores a democracia é um meio para um fim, não um fim em si mesmo. Se um sistema democrático não assegura empregos, como na África do Sul, ou segurança, como nas Filipinas, ou está associado a uma estagnação nos padrões de vida, como nos EUA, alguns eleitores acabam sendo atraídos pela alternativa autoritária. Uma tendência para o autoritarismo vai se tornar mais provável no contexto da crescente desigualdade, quando o sistema político e econômico parece "manipulado" em favor de elites.
Naturalmente, sempre haverá pessoas que veem a liberdade política como um valor em si mesmo - como algo indispensável à dignidade humana. Mas dissidentes dispostos a ir para a cadeia em defesa da liberdade de expressão são relativamente raros. Ronald Reagan, o presidente americano que viu os últimos anos da Guerra Fria, gostava de afirmar que a "liberdade funciona". Infelizmente, se as pessoas comuns pararem de acreditar nisso, alguns podem abrir mão da liberdade.

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