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Desde que escrevi o prefácio para a nova edição das 200 Crônicas Escolhidas de Rubem Braga (Record, edição comemorativa do centenário de nascimento do cronista, que acaba de chegar às livrarias), não consigo mais parar de reler o autor. Na semana passada, preparando-me para uma mesa de debates sobre sua obra na série Prosa na Livrarias – que dividi com Joaquim Ferreira dos Santos e Mauro Ventura, no Rio de Janeiro – passei a devorar suas crônicas ainda com mais avidez. Com uma fome interminável.
Foi quase uma intoxicação – mas que doença saudável é o vício em grandes escritores! Enquanto relia Braga, atravessei um tanto intrigado os poemas de Sérgio Alcides, reunidos em seu novo livro, Píer (Editora 34). Poemas desafiadores, que me pediam, desde os primeiros versos, um posto de observação – um píer – desde onde eu pudesse contemplá-los com mais lucidez.
Eis que encontro em Braga a plataforma que buscava. Ela me aparece na crônica “O Mistério da Poesia”, de 1949. “Aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia”, o cronista anuncia. Lê inspirado pela leitura de dois versos de um poeta boliviano, cujo nome não pode recordar. Dizem: “Trabajar era Bueno em El Sur.../ Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos”. Versos simples, que falam do homem, da natureza e do modo como o trabalho os integra. Mas que, decidiu Braga, guardam um mistério.
“De onde vem o efeito poético?”, ele se pergunta. Responde: “Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia”. É o que faz Sérgio Alcides em seu luminoso Píer. Para ler seus poemas, preciso me equilibrar sobre eles – e felizmente encontrei em Braga um cais acolhedor. Já na abertura, Alcides nos oferece uma definição imprevista da poesia: “Poeira que está caindo,/ cobrindo as mercadorias”. Como ele nos diz também, o poeta se limita a “arranhar” o mundo, “o mundo menos real/ – mas real – da circunstância”. Não “se aprofunda”. Permanece em sua plataforma, ou não chega a escrever.
A circunstância: eis o nome que Alcides dá ao que Braga chama de “palavras de todo dia”. O banal, o comum, o transitório – tudo aquilo que, a princípio, parece resistir à poesia e que, contudo, justamente porque resiste, consegue abrigá-la. Para o poeta, a poesia contamina o mundo – do mesmo modo que me contaminei com as crônicas de Braga. Diz Sérgio Alcides: “Não há corpos, não há tempo/ fora desta mancha gráfica,/ página estreita virando,/ escrita sombra de sonho,/ curva de interrogação”. A poesia se origina do espanto que é divisar o mundo um pouco mais acima do que, na verdade, ele está. Em capturá-lo no píer da página estreita.
Essa elevação é uma estratégia, com a qual o poeta amansa o bicho escuro e “profundo” que traz dentro de si. Não conhece o bicho que o habita, mas o alisa (arranha) e dele se aproxima. É verdade: vivemos, talvez hoje mais que nunca, em um mundo tolo. Alcides o descreve: “De uma montanha-delivery,/ nasce um ridículo Mickey/ a pilha, que, made in China/ tomba tocando tambor”. Contra este mundo – “onde pasta o gado idiota/ que não dá leite, só arrobas” – a poesia promove uma espécie de repuxão. A própria web (“arroba”) pode ser sua arma: por que não?
Mas – em pleno sol, em pleno cais – não precisamos ser graves. A gravidade, diz o poeta, não está nas coisas, mas em nossa mente. “A gravidade está no pensamento que, situado na cabeça,/ empurra devagar o vulto dos sintomas para baixo”. Braga deplora a crença de que, quando turvamos um pouco as águas, elas se tornam mais profundas”. Reclama: “Não faltam poetas modernos que procuram este mistério (da poesia) enunciando coisas obscuras”. Da claridade de um píer, mostra-nos Sérgio Alcides, podemos arrancar, tantas vezes, mais potência. Muitos insistem em acreditar que não – e repetem o mesmo engano daqueles que pensam que das crônicas, como as de Rubem Braga, só tiramos futilidades.
O pensamento mais complexo, muitas vezes, está na superfície. Escreve Alcides: “Lá vem o beduíno: sou eu? Seu turbante/ é meu pensamento dando voltas, em branco”. O tédio, a assepsia, o branco, que em geral desprezamos como inúteis, podem gerar o imprevisto. E então Alcides nos apresenta a realidade mais dura: a de que não existem ideias soltas, “imateriais”. “Só os/ ossos – os hóspedes involuntários – perpetuam/ em suspenso os nossos mais prudentes pensamentos”. Ao perfurar um poema, ultrapassadas a carne e a paixão, chegamos ao osso, isto é, à ideia dura, a “ideia coisa”, última região em nosso interior em que o pensamento ainda se comprime.
“A vida é só um episódio na história dos ossos”, escreve Sérgio Alcides, levando-nos a recordar dos bilhões de anos que o planeta Terra viveu sem necessitar de nossa existência. Também a poesia, para além da carne, insiste nos ossos que, sozinhos, “cuidam desanimados de si”. Nessa altura, Alcides e Braga se encontram em uma suave, mas desafiadora, metafísica das coisas que – uma vez que a morte é inevitável – se transforma em uma metafísica dos ossos.
Para além do corpo, não há o espírito, mas o osso. Tanto o espírito, como o pensamento, ainda são parte do corpo vivo e não existem sem ele. Finda a vida, restam os ossos, com sua metafísica fria e sem eloquência. Resta algo que já não está mais no homem, mas além do homem. Escreve Alcides: “Os ossos são desumanos./ Lê-se neles apenas o presente, que branqueja”. Lê-se o mesmo, o imóvel, enquanto o humano é diferença e movimento.
Escreve ainda Alcides: “Não leio nos ossos o futuro, que só pode/ ser lido nas vísceras”. O futuro só se inscreve na sujeira, na respiração desordenada, nos fluidos repulsivos, no resfolegar. Nos ossos, o poeta lê um presente perpétuo, que na verdade mata o presente, pois este é sempre desmentido. Conhecia Rubem Braga muito bem esses movimentos mínimos com que a vida se perpetua. O poeta, dizia Braga, quer muito pouco. Cultiva só o “desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez”. Algo tão estreito – como um píer – mas que ainda assim consegue nos sustentar.
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