quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Por que o Cade foi parar em Davos? (Vinícius Marques de Carvalho)

VALOR ECONÔMICO  - 23/02/2017
Recentemente, o Valor publicou uma matéria sobre a imagem do Brasil no Fórum Econômico Mundial em Davos. Publicada com o título "Imagem do Brasil melhora, mas as queixas persistem", a matéria relatou um certo frisson causado pelos elogios recebidos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) durante o painel em que participava o ministro da Fazenda Henrique Meirelles.
Trata-se de uma das "melhores agências antitruste do mundo", disse um empresário diante do ministro orgulhoso, de acordo com a matéria. Se por um lado a nossa perspicácia vira-lata pode nos levar a indagar se essa novidade é o ponto máximo em que podemos chegar em Davos, por outro, o orgulho se justifica. Não é regra o Brasil receber elogios pelo fato de suas instituições funcionarem.
O Cade já se situa entre as oito melhores agências de defesa da concorrência do mundo desde 2013. Ganhou, inclusive, dois prêmios de melhor agência das Américas, de modo que não chega a ser uma novidade esse reconhecimento.
O Cade já se situa entre as oito melhores agências de defesa da concorrência do mundo desde 2013
Assim, mais do que repercutir o elogio recente, o importante é tentar compreender como foi criado um ambiente de inovação institucional constante com resultados tão expressivos.
Esse esforço de compreensão não se presta apenas ao fortalecimento do próprio Cade, ele serve para transbordar as experiências, permitir que outros órgãos se apropriem daquilo que pode ser adotado, aperfeiçoem e multipliquem.
Há alguns aspectos elementares, que figuram com frequência em reflexões sobre fatores que contribuem para esse ambiente. São exemplos típicos: corpo técnico especializado e bem remunerado, transparência e respeito ao devido processo legal, autonomia decisória e orçamentária, mandato para os dirigentes escolhidos por meio de processos que levem em conta sua capacidade técnica.
Além desses, outras estratégias menos visíveis e que complementam ou conferem efetividade às mencionadas acima também merecem destaque. Com base na própria experiência no Cade, destaca-se, em primeiro lugar, a importância em não desprezar a história da instituição. É claro que sempre há o que ser aprimorado. Às vezes, até ajustes e mudanças mais radicais são imprescindíveis.
Avanços, entretanto, dependem da trajetória anterior. Parece óbvio, mas não custa frisar: avanços só se configuram como tais porque alguém criou condições para sua viabilidade ou, no mínimo, para se testar algo novo.
A criação de um ambiente em que a missão da instituição esteja à frente de disputas por micropoderes também é relevante. Muitas vezes é possível alcançar esse patamar construindo processos decisórios mais democráticos, em que a equipe participe da construção dos grandes cenários de futuro. Além de conferir legitimidade interna, é relevante que a sociedade saiba para onde vai aquela instituição. Previsibilidade é crucial. Para isso, o planejamento estratégico deve ser público, a agenda normativa deve ser anunciada com antecedência e deve ser objeto de consultas públicas substanciais.
Outro aspecto comumente em voga neste debate é o da captura. O baixo risco de captura não decorre apenas de regras formais, mas da cultura institucional criada. O isolamento não é sinônimo de insulamento, o diálogo aberto e transparente com agentes públicos e privados é que garante a legitimidade das políticas implementadas. Abrir-se ao convencimento e se dispor a convencer quebra resistências.
Igualmente importante é ter uma política explícita de resolução negociada de processos sancionadores que desestimule a prática de ilícitos e, simultaneamente, diminua os custos administrativos de uma investigação. Complementarmente, se a instituição tem funções julgadoras, as mudanças de interpretação devem ser conduzidas com cautela, de preferência anunciando tendências com alguma antecedência, sem dar cavalo de pau. Nesse sentido, vale lembrar que a criação de jabuticabas nem sempre é uma alternativa ruim. A experiência internacional é sempre uma boa fonte de resolução de problemas. No entanto, há uma ressalva: olhar as especificidades brasileiras é condição essencial para fazer adaptações ou mesmo excluir determinados modelos.
Por último, mas certamente não menos relevante, usar a multiplicidade institucional de maneira favorável é essencial. Explico. Há diversas situações em que há compartilhamento de atribuições entre vários órgãos. Por exemplo, tanto o Cade como o Ministério Público têm competência para investigar cartéis.
Em situações como essa, dois resultados são possíveis: a cooperação ou a competição. A primeira solução é a mais saudável, desde que prevaleçam arranjos que otimizem e não paralisem a atuação dos órgãos. Do contrário, alguma competição não faz mal a ninguém. No mais, uma certa dose de pragmatismo e bom senso também ajudam.
No caso de instituições encarregadas de intervenção na atividade econômica, como o Cade, a combinação de conhecimento jurídico e econômico ajuda a evitar formalismos excessivos, dos dois lados.
Enfim, a ideia de que as instituições importam já é quase uma cantilena. O problema é que elas não se organizam no vácuo, ou em condições normais de temperatura e pressão. Estabilizar relações de mercado sem intervenções inapropriadas, conferir ou garantir direitos de propriedade e construir estruturas adequadas de incentivo não é só ciência. Tudo isso envolve um pouco de engenho, um pouco de incrementalismo. Algo que Davos percebeu.
Vinícius Marques de Carvalho é advogado e professor da USP. Foi presidente do Cade entre 2012 e 2016
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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