quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Capitalismo e democracia, casal estranho (Martin Wolf, Valor Econômico, Financial Times)



Quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Martin Wolf: Capitalismo e democracia, casal estranho


A democracia está em recessão. Depois de se propagar por todo o planeta entre a década de 1970 e o início da de 2000, está em retirada. Também em retirada está a crença em uma economia liberal globalizada. Há alguma ligação entre as duas? Sim. A democracia e o capitalismo estão casados, mas essa tem sido, muitas vezes, uma união turbulenta. Atualmente, passa por um período extremamente difícil.
Larry Diamond, do Hoover Institution, aventou a ideia de uma "recessão democrática". Roberto Foa, da Universidade de Melbourne, e Yascha Mounk, de Harvard, falaram da "separação democrática", apontando para uma deprimente perda de convicção na democracia nos EUA e na Europa. Em seu mais recente relatório anual, a Freedom House afirma que "um total de 67 países sofreram retrações líquidas nas áreas de direitos humanos e liberdades civis em 2016, comparados aos 36 que registraram aumentos. Foi o 11º ano consecutivo em que os declínios superaram as ascensões".
Por outro lado, a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA demonstra hostilidade ao comércio externo liberal. A hostilidade do pós-crise a Wall Street e ao livre fluxo dos ativos financeiros mundiais também é forte, tanto na direita quanto na esquerda. A oposição à livre circulação de pessoas é generalizada.
O banco de dados Polity IV do [centro de pesquisa sobre a violência política] Center for Systemic Peace é um quadro inestimável do avanço da democracia desde 1800. Entre 1800 e 2016, o número de regimes políticos que classifica como "democráticos" subiu de 0 entre 22, para 97 entre 167. De fato, em 1800 quase todos os regimes eram autocracias. O número de democracias subiu na segunda metade do século XIX, deu um salto no fim da Primeira Guerra Mundial, recuou significativamente na década de 1930 e no início da de 1940, voltou a dar um salto no fim da Segunda Guerra Mundial, aumentou sistematicamente até 1988 e disparou na década de 1990 e começo da de 2000. O número de autocracias alcançou um pico de 89 em 1977. Depois, veio abaixo, com a queda da União Soviética e a maior evidência do fracasso das ditaduras. Infelizmente, desde 1990 cerca de 50 governos têm sido "anocracias", isto é, politicamente caóticos.
O número de Estados nominalmente soberanos aumentou muito, principalmente desde 1945. Portanto, é de bom senso nos concentrarmos na proporção dos regimes do mundo que são democráticos. Também é possível relacionar essa proporção com a relação comércio mundial sobre produção mundial. (Não por coincidência, outras medidas da globalização - circulação de pessoas e de capital - têm estreita correlação com o comércio exterior).
Essa correlação, embora longe de perfeita, é bem estreita. O fim do século XIX e o início do século XX foi um período de globalização e de democratização. As décadas de 1920 e 1930 foram, ao contrário, um período de desglobalização e desdemocratização. As décadas de 1950 e 1960 foram um período de relativa estabilidade em ambas as frentes (num momento em que a abertura das economias dos países de alta renda foi neutralizada pelo fechamento das economias da maioria dos países recém-independentes). A globalização ressurgiu na década de 1970, seguida pela democratização. Além da globalização, o outro poderoso indicador antecedente da democratização foi a vitória das democracias nas duas guerras mundiais e na Guerra Fria. Saltos do número de democracias se seguiram às vitórias.
A ligação não é apenas empírica. A democracia e o capitalismo repousam num ideal de igualdade: todos podem participar da tomada de decisões políticas e atuar o melhor possível no mercado. Essas liberdades eram revolucionárias há não muito tempo atrás
Em poucas palavras, a Revolução Industrial levou, em última instância, a uma revolução política, da autocracia para a democracia. Além disso, períodos de globalização têm sido associados à disseminação da democracia, e períodos de desglobalização, ao seu oposto.
Isso não surpreende. Como argumentou Benjamin Friedman, de Harvard, períodos de prosperidade fortalecem a democratização, e vice-versa. Desde 1820, as rendas médias reais mundiais per capita ficaram 13 vezes maiores, e se multiplicaram ainda mais em países de alta renda. Na medida em que as economias avançavam, as pessoas tinham de ser escolarizadas. Essas mudanças, e, lamentavelmente, a mobilização de massas para a guerra industrializada, fortalecem as exigências de inclusão política.
Inversamente, as crises financeiras que destruíram a globalização na década de 1930 e a prejudicaram após 2008 levaram à pobreza, à insegurança e à revolta. Esses sentimentos não propiciam a consolidação da confiança necessária para uma democracia saudável. No mínimo, a democracia exige a confiança de que os vencedores não usarão seu poder temporário para destruir os perdedores. Se a confiança desaparece, a política se torna tóxica.
A ligação não é apenas empírica. A democracia e o capitalismo repousam num ideal de igualdade: todos podem participar da tomada de decisões políticas e atuar o melhor possível no mercado. Essas liberdades eram revolucionárias há não muito tempo atrás.
Mas profundos conflitos também existem. A política democrática depende da solidariedade; os capitalistas não dão importância à nacionalidade. A democracia é local; o capitalismo é essencialmente globalizado. A política democrática é fundamentada na igualdade dos cidadãos; o capitalismo dá pouca importância à distribuição da riqueza. A democracia diz que todos os cidadãos têm voz; o capitalismo concede aos ricos, de longe, a voz mais forte. Os eleitorados almejam alguma segurança econômica; o capitalismo tende a viver surtos de crescimento e colapsos.
As tensões entre democracia nacional e capitalismo globalizado podem ser desastrosas, como comprovou a década de 1930. Mas a história mostra também que os dois sistemas andam juntos, embora um tanto incomodados.
Não se pretende argumentar com isso que todas as economias de mercado são democracias ou que todas as economias de mercado têm de ser globalizadas. O que se pretende argumentar é que as democracias estáveis detêm, ao mesmo tempo, economias de mercado pelo menos razoavelmente abertas. Nenhuma via alternativa de gerir os assuntos das sociedades complexas se mostrou factível. O objetivo agora tem de ser administrar o capitalismo de forma a que ele dê sustentação à democracia e administrar a democracia de forma a que ela faça com que o capitalismo globalizado funcione melhor para todos. Atualmente, estamos implantando o caos nesse casamento. Precisamos melhorar, e muito. (Tradução de Rachel Warszawski)
Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

@economia @globalização @Trump

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