Terça-feira, 30 de Junho de 2020
Valor Econômico / Opinião
Cenário Político-Econômico: Colunistas
Por Jeffrey Sachs
Sem respostas equitativas, mundo sucumbirá a novas ondas de instabilidade.
Três países — EUA, Brasil e México — respondem por quase metade (46%) das mortes causadas pela covid-19 no mundo e mesmo assim têm apenas 8,6% da população mundial. Cerca de 60% das mortes na Europa estão concentradas em apenas três países — Itália, Espanha e Reino Unido —, que respondem por 38% da população europeia. O número de mortes e a taxa de mortes foram bem menores na maior parte do norte e centro da Europa.
Vários fatores determinam a taxa de mortes por covid-19 de um país: a qualidade da liderança política, a coerência da resposta do governo, a disponibilidade de leitos hospitalares, a extensão das viagens internacionais e a estrutura etária da população. Mesmo assim uma característica estrutural profunda parece estar moldando o papel desses fatores: a renda e a distribuição de riqueza nesses países.
EUA, Brasil e México têm uma desigualdade de renda e riqueza muito grande. O Banco Mundial informa os respectivos coeficientes de Gini dos últimos anos (2016-2018) de 41,4 nos EUA, 53,5 no Brasil e 45,9 no México. (Numa escala de 100 pontos, um valor igual a 100 significa desigualdade absoluta, com uma pessoa controlando toda a renda ou riqueza, e zero significa uma distribuição completamente igual por pessoa ou família).
Os EUA possuem o maior coeficiente de Gini entre as economias avançadas, enquanto Brasil e México estão entre os países mais desiguais do mundo. Na Europa, Itália, Espanha e Reino Unido — com coeficientes de Gini de 35,6, 35,3 e 34,8, respectivamente — são mais desiguais do que vizinhos do norte e leste, como Finlândia (27,3), Noruega (28,5), Dinamarca (28,5), Áustria (30,3), Polônia (30,5) e Hungria (30,5).
A correlação das taxas de mortes por milhão e desigualdade de renda é longe de perfeita; outros fatores importam muito. A desigualdade na França se equipara à da Alemanha, mas sua taxa de mortes por covid-19 é significativamente maior. A taxa de mortes na relativamente igualitária Suécia é significativamente maior que a de seus vizinhos, porque a Suécia decidiu manter como voluntárias e não obrigatórias suas políticas de distanciamento social. A relativamente igualitária Bélgica sofreu com um número muito alto de mortes, graças em parte à decisão das autoridades de informar os números de mortes comprovadas pela covid-19 e também o número de mortes prováveis.
A desigualdade de renda elevada é um flagelo social de muitas maneiras. Conforme relataram de modo convincente Kate Pickett e Richard Wilkinson em dois livros importantes, “The Spirit Level” e “The Inner Level”, uma desigualdade maior leva a condições de saúde piores, o que aumenta significativamente a vulnerabilidade a mortes pela covid-19.
Além disso, a maior desigualdade leva a uma menor coesão social, menos confiança social e mais polarização política. Tudo isso afeta negativamente a capacidade e prontidão dos governos para adotar medidas de controle fortes. Maior desigualdade significa que uma proporção maior de trabalhadores de baixa renda — de arrumadeiras, caixas, guardas e pessoas que trabalham com entregas, a lixeiros e trabalhadores da construção e operários — precisa continuar com suas rotinas diárias, mesmo sob o risco de contágio. Mais desigualdade também significa mais pessoas vivendo aglomeradas em moradias pequenas, incapazes assim de se abrigar com segurança.
Líderes populistas exacerbam os custos enormes da desigualdade. O presidente dos EUA, Donald Trump, o líder brasileiro, Jair Bolsonaro, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foram eleitos por sociedades desiguais e socialmente divididas, com o apoio de muitos eleitores da classe trabalhadora insatisfeitos (geralmente homens brancos, menos instruídos e que se ressentem de seu declínio social e status econômico). Mas a política do ressentimento é quase o oposto da política do controle de epidemias. A política do ressentimento evita os especialistas, ridiculariza as evidências científicas e se ressente das elites que trabalham pela internet, dizendo aos trabalhadores que eles não podem ficar em casa.
Os EUA são tão desiguais, politicamente divididos e mal governados por Trump que efetivamente desistiram de qualquer estratégia nacional coerente para controlar a pandemia. Todas as responsabilidades foram transferidas para os governos estaduais e locais, que foram deixados para se virar por conta própria. Manifestantes de direita fortemente armados já chegaram a se aglomerar nas capitais estaduais em oposição às restrições à atividade empresarial e à mobilidade pessoal. Até mesmo as máscaras de proteção foram politizadas: Trump se recusa a usá-las e recentemente disse que algumas pessoas fazem isso apenas para demonstrar sua desaprovação a ele. O resultado é que seus apoiadores alegremente se recusam a usá-las e o vírus, que começou a atacar nos Estados costeiros “azuis” (Democratas), agora atinge mais duramente a base de Trump nos Estados “vermelhos” (Republicanos).
Brasil e México estão imitando as políticas dos EUA. Bolsonaro e o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, são populistas por excelência, nos moldes de Trump, e fazem troça do vírus, desdenhando os conselhos de especialistas, menosprezando os riscos e rejeitando com estardalhaço as medidas de proteção pessoal. Eles também estão guiando seus países para um desastre “trumpiano”.
Com exceção do Canadá e pouquíssimos outros lugares, os países da América do Norte e América do Sul estão sendo devastados pelo vírus porque quase todo o Hemisfério Ocidental compartilha um legado de desigualdade em massa e discriminação racial generalizada. Até mesmo o bem-governado Chile caiu presa da violência e instabilidade no ano passado, graças a uma desigualdade elevada e crônica. Este ano, o Chile (juntamente com Brasil, Equador e Peru) registrou uma das maiores taxas de morte pela covid-19 do mundo.
A desigualdade certamente não é uma sentença de morte. A China é bastante desigual (com um coeficiente de Gini de 38,5), mas seu governo nacional e os das províncias adotaram medidas rígidas de controle depois do surto inicial em Wuhan, basicamente contendo o vírus. O surto recente em Pequim, após semanas em nenhum novo caso confirmado, resultou em novos “lockdowns” e testagem maciça.
Em outros países, porém, estamos testemunhando mais uma vez os custos enormes da desigualdade em massa: governança inepta, desconfiança social e uma população enorme de pessoas vulneráveis e incapazes de se proteger de perigos invasores. De uma maneira alarmante, a própria pandemia está aumentando ainda mais as desigualdades.
Os ricos agora trabalham e prosperam pela internet (a fortuna do fundador da Amazon, Jeff Bezos, cresceu US$ 49 bilhões desde o começo do ano graças à mudança decisiva para o comércio eletrônico), enquanto os pobres perdem seus empregos e com frequência a saúde e a vida. E os custos da desigualdade certamente aumentarão ainda mais, com governos famintos por receitas cortando seus orçamentos e serviços públicos vitais para os pobres.
Mas um ajuste de contas se aproxima. Na ausência de governos coerentes, capazes e confiáveis que possam implementar respostas equitativas e sustentáveis à pandemia, e estratégias para a recuperação econômica, o mundo sucumbirá a novas ondas de instabilidade geradas por um conjunto crescente de crises globais.
"Com exceção do Canadá e pouquíssimos outros lugares, os países da América do Norte e América do Sul estão sendo devastados pelo vírus porque quase todo o Hemisfério Ocidental compartilha um legado de desigualdade em massa e discriminação racial generalizada"
Jeffrey D. Sachs é professor de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e diretor da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. Copyright: Project Syndicate, 2020. www. project- syndicate.org
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.