VALOR ECONÔMICO - 06/01/2017 -
Artigo Original em: www.project-syndicate.org
As contradições chinesas (Adair Turner)
A China tem opções de políticas não disponíveis às economias ocidentais.
O ano de 2016 terminou com previsões ligeiramente melhores para o crescimento e a inflação mundiais. Em parte, isso reflete as expectativas de um grande novo estímulo fiscal nos EUA sob o presidente Donald Trump. Mas igualmente importante é o vigor da economia chinesa, onde a aquecida produção industrial vem alimentando um forte aumento dos preços mundiais das commodities. Essa vitalidade desconcertou as expectativas de que o boom de crédito de sete anos na China, durante o qual a relação dívida/PIB subiu de 150% para 250%, inevitavelmente chegaria ao fim em 2016. Alguns investidores ocidentais previram uma crise bancária devido a enormes dívidas incobráveis; outros esperavam que o presidente Xi Jinping, tendo consolidado sua posição política, introduzisse reformas econômicas estruturais. Mas quase todos os economistas não chineses previram uma desaceleração significativa, o que intensificaria as pressões deflacionárias em todo o mundo.
Na verdade, o oposto aconteceu. Empréstimos do banco central e de governos locais cresceram rapidamente. O Banco do Povo da China (BPC) tem emitido empréstimos diretos a bancos estatais numa manobra que assemelha-se muito a financiamento monetário de gastos governamentais.
Os diretores dos bancos são primordialmente membros do partido e, em segundo lugar, presidentes e CEOs de bancos". Numa economia de mercado socialista híbrida, o crescimento não precisa ser limitado pelas preocupações sobre a sustentabilidade da dívida
Essas políticas, além disso, são cada vez mais justificadas por afirmações segundo as quais a China tem opções de políticas não disponíveis às economias ocidentais. Em artigo em julho, Sheng Songcheng, diretor de estatísticas do BPC, argumentou que "o arcabouço macro numa economia de mercado socialista é superior ao das economias ocidentais", porque "o governo chinês tem poder significativo em termos de política monetária e fiscal e é capaz de buscar a combinação ideal".
Xi pode ter endossado em 2013 "o papel decisivo do mercado", mas isso não diminuiu seu manejo marxista-leninista do papel de liderança do Estado. Shang Fulin, presidente da Comissão de Regulamentação Bancária da China (CRBC) lembrou em setembro os diretores dos bancos que eles "são primordialmente membros e secretários do partido e, em segundo plano, presidentes e CEOs de bancos". Numa economia de mercado socialista híbrida, ao que parece, o crescimento não precisa ser limitado pelas preocupações sobre a sustentabilidade da dívida.
Em certos sentidos, isso é verdade. O aumento da alavancagem chinesa não produzirá uma crise financeira do tipo visto em 2008. A maior parte da dívida é devida dentro do sistema estatal - por exemplo, por empresas estatais a bancos estatais - e o governo poderia simplesmente anular dívidas incobráveis e recapitalizar os bancos, financiando a operação com dinheiro tomado de empréstimo ou impresso. Alternativamente, os bancos poderiam rolar perpetuamente a dívida existente, provendo indefinidamente novos empréstimos para pagar antigas dívidas.
Naturalmente, isso produziria desperdício de investimentos. Com efeito, como os bancos que não impõem restrições orçamentárias rígidas a empresas financeiramente insustentáveis, e como o sistema de planejamento é incapaz de impor uma disciplina alternativa eficaz, a China já está inundada por prédios de apartamentos em cidades de terceiro nível que nunca serão ocupados e por enorme excesso de capacidade na industria pesada.
Mas, como argumentam alguns decisores chineses, todos os processos de crescimento envolvem desperdício: os booms ferroviários do Século XIX no Reino Unido e nos EUA criaram enorme excesso de capacidade e prejuízos para investidores, ainda que tenham estimulado transformações econômicas. Na China, também, os enormes desperdícios poderão ser compatíveis com o crescimento rápido.
Suponhamos que um quarto do investimento de capital chinês - atualmente em torno de 44% do PIB - seja desperdiçado. Isso significaria que o povo chinês está sacrificando desnecessariamente 11% do PIB em consumo perdido. Mas se os 33% restantes do PIB forem bem investidos, ainda poderá haver crescimento rápido. E, paralelamente a desperdícios óbvios, a China realiza muitos investimentos de alto retorno - na excelente infraestrutura urbana das cidades de primeira linha e em equipamentos de automação nas empresas privadas, como reação ao aumento dos salários reais.
Há limites na economia de mercado socialista chinesa, mas eles estão no lado do passivo dos balanços dos bancos, não no lado dos ativos. Se os ativos bancários representam mais de 300% do PIB - mais de US$ 30 trilhões -, igual tem de ser a combinação de depósitos bancários, títulos bancários, produtos de gestão de fortunas ou outros passivos bancários na carteiras de empresas ou indivíduos. O que esses investidores fazem com suas participações é crucial.
Se eles levarem seu dinheiro para o exterior, a taxa de câmbio administrada se tornará insustentável. Até mesmo os US$ 3 trilhões em reservas cambiais chinesas, abaixo dos US$ 4 trilhões em 2014, parecem pequenos em comparação com US$ 30 trilhões em ativos financeiros. Todo cidadão chinês tem legalmente o direito de retirar US$ 50 mil do país por ano, e se apenas 1% dos adultos tiverem condições de fazê-lo, isso poderia significar saídas de capital anuais de US$ 500 bilhões.
Além disso, numa economia aberta ao comércio e a investimentos diretos, tanto de fora para dentro como de dentro para fora, há diversas oportunidades para disfarçar fluxos de capital financeiro de curto prazo como operações em conta corrente e de investimento no longo prazo. O rápido crescimento do crédito foi, portanto, igualado, em 2016, por restrições aos fluxos de capital, e mais do mesmo deve ocorrer em 2017.
A política alternativa seria deixar cair a taxa de câmbio. Mas isso criaria o risco de uma reação agressiva de um governo Trump protecionista, e poderia produzir inflação retroalimentadora, caso os poupadores buscarem gastar seu dinheiro antes que ele perca valor. Até mesmo uma economia de mercado socialista híbrida defronta-se com restrições, caso também deseje ser uma economia aberta. Agudas contradições entre diferentes vertentes da política chinesa estão se tornando cada vez mais óbvias.
A raiz dessas contradições está na ausência de restrições orçamentárias rígidas - sejam de mercado ou de uma forma de economia planejada - a empresas estatais e governos locais. E as barreiras a reforma são políticas: relutância em enfrentar perdas de empregos em estatais, particularmente no cinturão de ferrugem no norte da China, e descentralização radical na forma de transferência de decisões econômicas para governos de cidades e províncias concorrentes.
O que vai acontecer é incerto. O cenário otimista é que a criação de empregos no setor privado e o rápido envelhecimento da população fará com que o mercado de trabalho fique mais apertado, o que tornará a proteção do emprego uma preocupação menos urgente - e tornará a reforma politicamente mais palatável. O cenário pessimista é que as estruturas de poder político irão frustrar indefinidamente a reforma.
De uma perspectiva externa, é impossível saber qual abordagem os decisores políticos irão adotar. Porém, quanto mais tempo durar o boom de crédito, menor será a probabilidade de a China conseguir realizar uma transição suave para um caminho econômico sustentável. (Tradução de Sergio Blum)
Adair Turner é presidente do Instituto para o Novo Pensamento Econômico e ex-presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido. Seu livro mais recente é "Between Debt and the Devil". Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Na verdade, o oposto aconteceu. Empréstimos do banco central e de governos locais cresceram rapidamente. O Banco do Povo da China (BPC) tem emitido empréstimos diretos a bancos estatais numa manobra que assemelha-se muito a financiamento monetário de gastos governamentais.
Os diretores dos bancos são primordialmente membros do partido e, em segundo lugar, presidentes e CEOs de bancos". Numa economia de mercado socialista híbrida, o crescimento não precisa ser limitado pelas preocupações sobre a sustentabilidade da dívida
Essas políticas, além disso, são cada vez mais justificadas por afirmações segundo as quais a China tem opções de políticas não disponíveis às economias ocidentais. Em artigo em julho, Sheng Songcheng, diretor de estatísticas do BPC, argumentou que "o arcabouço macro numa economia de mercado socialista é superior ao das economias ocidentais", porque "o governo chinês tem poder significativo em termos de política monetária e fiscal e é capaz de buscar a combinação ideal".
Xi pode ter endossado em 2013 "o papel decisivo do mercado", mas isso não diminuiu seu manejo marxista-leninista do papel de liderança do Estado. Shang Fulin, presidente da Comissão de Regulamentação Bancária da China (CRBC) lembrou em setembro os diretores dos bancos que eles "são primordialmente membros e secretários do partido e, em segundo plano, presidentes e CEOs de bancos". Numa economia de mercado socialista híbrida, ao que parece, o crescimento não precisa ser limitado pelas preocupações sobre a sustentabilidade da dívida.
Em certos sentidos, isso é verdade. O aumento da alavancagem chinesa não produzirá uma crise financeira do tipo visto em 2008. A maior parte da dívida é devida dentro do sistema estatal - por exemplo, por empresas estatais a bancos estatais - e o governo poderia simplesmente anular dívidas incobráveis e recapitalizar os bancos, financiando a operação com dinheiro tomado de empréstimo ou impresso. Alternativamente, os bancos poderiam rolar perpetuamente a dívida existente, provendo indefinidamente novos empréstimos para pagar antigas dívidas.
Naturalmente, isso produziria desperdício de investimentos. Com efeito, como os bancos que não impõem restrições orçamentárias rígidas a empresas financeiramente insustentáveis, e como o sistema de planejamento é incapaz de impor uma disciplina alternativa eficaz, a China já está inundada por prédios de apartamentos em cidades de terceiro nível que nunca serão ocupados e por enorme excesso de capacidade na industria pesada.
Mas, como argumentam alguns decisores chineses, todos os processos de crescimento envolvem desperdício: os booms ferroviários do Século XIX no Reino Unido e nos EUA criaram enorme excesso de capacidade e prejuízos para investidores, ainda que tenham estimulado transformações econômicas. Na China, também, os enormes desperdícios poderão ser compatíveis com o crescimento rápido.
Suponhamos que um quarto do investimento de capital chinês - atualmente em torno de 44% do PIB - seja desperdiçado. Isso significaria que o povo chinês está sacrificando desnecessariamente 11% do PIB em consumo perdido. Mas se os 33% restantes do PIB forem bem investidos, ainda poderá haver crescimento rápido. E, paralelamente a desperdícios óbvios, a China realiza muitos investimentos de alto retorno - na excelente infraestrutura urbana das cidades de primeira linha e em equipamentos de automação nas empresas privadas, como reação ao aumento dos salários reais.
Há limites na economia de mercado socialista chinesa, mas eles estão no lado do passivo dos balanços dos bancos, não no lado dos ativos. Se os ativos bancários representam mais de 300% do PIB - mais de US$ 30 trilhões -, igual tem de ser a combinação de depósitos bancários, títulos bancários, produtos de gestão de fortunas ou outros passivos bancários na carteiras de empresas ou indivíduos. O que esses investidores fazem com suas participações é crucial.
Se eles levarem seu dinheiro para o exterior, a taxa de câmbio administrada se tornará insustentável. Até mesmo os US$ 3 trilhões em reservas cambiais chinesas, abaixo dos US$ 4 trilhões em 2014, parecem pequenos em comparação com US$ 30 trilhões em ativos financeiros. Todo cidadão chinês tem legalmente o direito de retirar US$ 50 mil do país por ano, e se apenas 1% dos adultos tiverem condições de fazê-lo, isso poderia significar saídas de capital anuais de US$ 500 bilhões.
Além disso, numa economia aberta ao comércio e a investimentos diretos, tanto de fora para dentro como de dentro para fora, há diversas oportunidades para disfarçar fluxos de capital financeiro de curto prazo como operações em conta corrente e de investimento no longo prazo. O rápido crescimento do crédito foi, portanto, igualado, em 2016, por restrições aos fluxos de capital, e mais do mesmo deve ocorrer em 2017.
A política alternativa seria deixar cair a taxa de câmbio. Mas isso criaria o risco de uma reação agressiva de um governo Trump protecionista, e poderia produzir inflação retroalimentadora, caso os poupadores buscarem gastar seu dinheiro antes que ele perca valor. Até mesmo uma economia de mercado socialista híbrida defronta-se com restrições, caso também deseje ser uma economia aberta. Agudas contradições entre diferentes vertentes da política chinesa estão se tornando cada vez mais óbvias.
A raiz dessas contradições está na ausência de restrições orçamentárias rígidas - sejam de mercado ou de uma forma de economia planejada - a empresas estatais e governos locais. E as barreiras a reforma são políticas: relutância em enfrentar perdas de empregos em estatais, particularmente no cinturão de ferrugem no norte da China, e descentralização radical na forma de transferência de decisões econômicas para governos de cidades e províncias concorrentes.
O que vai acontecer é incerto. O cenário otimista é que a criação de empregos no setor privado e o rápido envelhecimento da população fará com que o mercado de trabalho fique mais apertado, o que tornará a proteção do emprego uma preocupação menos urgente - e tornará a reforma politicamente mais palatável. O cenário pessimista é que as estruturas de poder político irão frustrar indefinidamente a reforma.
De uma perspectiva externa, é impossível saber qual abordagem os decisores políticos irão adotar. Porém, quanto mais tempo durar o boom de crédito, menor será a probabilidade de a China conseguir realizar uma transição suave para um caminho econômico sustentável. (Tradução de Sergio Blum)
Adair Turner é presidente do Instituto para o Novo Pensamento Econômico e ex-presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido. Seu livro mais recente é "Between Debt and the Devil". Copyright: Project Syndicate, 2016.
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