sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O legado de Obama (Carlos Eduardo Lins da Silva)

Ao eleger-se presidente dos EUA em 2008, Barack Obama despertou em seu país e no mundo tantas e tão diversificadas esperanças que nem ele nem ninguém poderiam jamais realizar integralmente. A carga simbólica de um negro comandar o mais rico e poderoso país do mundo, que apenas emergia historicamente de um passado de segregação racial (a qual só foi legalmente abolida nos anos 60) era imensa.
Havia tamanha expectativa, que Obama ganhou o Prêmio Nobel da Paz meses após ter tomado posse, sem concretizar uma só ação que o justificasse, apenas pela antecipação do que poderia vir a fazer. O formidável arsenal retórico de sua campanha, expressado com dons oratórios raros na cena política mundial contemporânea, antecipava quase tudo para quase todos.
O país estava mergulhado na sua pior crise econômica em pelo menos 80 anos e moralmente combalido pela desastrosa condução da guerra no Iraque e no Afeganistão pelo seu antecessor, George W. Bush.
Os desafios para Obama eram imensos. E foram acrescidos por uma oposição implacável, baseada acima de tudo em preconceito racial e ideológico, que se expressou intensamente no Congresso. Obama só teve maioria nas duas casas do Legislativo nos dois primeiros anos de governo. Nos quatro seguintes, ficou em minoria na Câmara e apertada vantagem no Senado. Nos dois anos finais, em minoria em ambas.
O Congresso dificultou enormemente as coisas para ele. Votar o Orçamento anual da União foi sempre complicado, e a administração pública teve de ser paralisada duas vezes (em 2013 e 2016) por falta de acordo. Em alguns temas que lhe eram prioritários, Obama não conseguiu nem contar com a bancada inteira de seu partido, como o controle de venda e uso de armas, que ele tentou ampliar, sem sucesso.
Por causa dos entraves no Congresso, Obama se valeu de "ordens executivas" e outras ações exclusivas da Presidência, espécies de decreto, cujos efeitos podem ser suspensos monocraticamente pelo seu sucessor.
Boa parte do legado de Obama poderá ser varrida por Donald Trump, por causa disso, como a proibição de explorar petróleo no Ártico e no Atlântico, a preservação de centenas de milhares de acres no Oeste do país como reservas naturais e até o reatamento de relações diplomáticas com Cuba.
Mas Trump não será capaz de destruir muito do que seu antecessor fez e irá se beneficiar de muito do que lhe será entregue, inclusive a economia em ordem, muito diferente da caótica situação em que Obama a pegou em 2009. Além de recolocar a economia nos eixos, o presidente tirou o país do atoleiro do Afeganistão e do Iraque, garantiu seguro-saúde a 20 milhões de pessoas que não contavam com ele e garantiu direitos civis a homossexuais, melhorou a imagem dos EUA na maior parte do mundo.
Nenhuma acusação de ilegalidade ou corrupção foi levantada contra ele ou seu vice nem contra qualquer integrante de seu ministério, algo inédito para qualquer administração federal americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Obama não cumpriu muitas de suas promessas e decepcionou milhões de pessoas, a começar por muitos afro-americanos, para quem seu líder não chegou nem perto de construir a sociedade pós-racial que anunciara. A vida dos negros americanos não melhorou significativamente nestes oito anos, e eles continuam discriminados por policiais, juízes, empregadores.
A prisão de Guantánamo, cujo fechamento foi o primeiro e um dos mais expressivos compromissos do candidato Obama, continua aberta, embora lá estejam agora apenas 55 prisioneiros (e outros 19 ainda poderão sair antes da posse de Trump), dos 242 que ali estavam quando ele assumiu.
Aos 55 anos, Barack Obama será a pessoa mais jovem a se tornar ex-presidente dos EUA desde Theodore Roosevelt, em 1909. Pela Constituição, não poderá se candidatar novamente à Casa Branca.
Embora ainda não tenha revelado seus planos para a aposentadoria, é muito provável que Obama continue a se dedicar às causas pelas quais lutou na Presidência e a batalhar para preservar a herança de seu governo.
Economia
Em 2009, os EUA enfrentavam sua pior recessão econômica desde os anos 30, e se encaminhavam para uma depressão. O desemprego chegou a 10%, a renda doméstica média foi 0,7% menor que a de 2008, o déficit público federal bateu em 9,8% do PIB.
Donald Trump vai receber de Obama um país com taxa de desemprego de 4,6% (após 75 meses seguidos de crescimento de vagas, algo que só ocorreu entre 1939 e 1945), renda doméstica média em 2015 superior em 5,2% à de 2014 e déficit público federal correspondente a 3,2% do PIB.
Os EUA estão muito longe do "desastre econômico" descrito por Trump durante a campanha. Como explicar a vitória da oposição em novembro?
Alguns grupos demográficos e algumas regiões do país não foram ainda beneficiados pela recuperação da economia, que foi lenta ao longo destes oito anos, em grande parte devido à grandiosidade da crise de 2007-2008. Operários menos qualificados de setores da economia em desvantagem tecnológica estão entre essas camadas da população e constituíram o grande bloco de apoio a Trump nos Estados-chave em que ele venceu Hillary Clinton por diferenças mínimas.
Outros desses contingentes são hispânicos e negros, cujos níveis de emprego e renda pouco melhoraram em relação aos de oito anos atrás. Sua frustração pode ter sido uma das causas da alta abstenção de eleitores que, se tivessem ido às urnas, teriam seguramente votado em Hillary.
Trump também atacou sistematicamente o excesso de regulação imposto pela administração Obama a empresas como razão para a economia não ter deslanchado muito nestes oito anos (a média de crescimento anual foi de 2%, enquanto a média do período pós-Segunda Guerra é de 2,9%).
De fato, Obama impôs 560 normas regulatórias em diversos setores da economia em seu governo, 50% a mais do que George W. Bush e acima de qualquer antecessor. Foram regras para melhorar condições de segurança no trabalho, dar direitos iguais a minorias, expandir informações sobre produtos em rótulos de alimentos e remédios, assegurar garantias a passageiros de avião, limitar emissão de poluentes, entre muitos outros.
O mais importante ato regulatório de seu governo foi a Lei Dodd-Frank, que conseguiu aprovar no Congresso em 2010, quando tinha maioria nas duas casas, e que ampliou muito a fiscalização do setor financeiro do país, como uma reação aos desmandos de Wall Street que levaram à crise de 2008.
Política externa
Obama teve êxitos indiscutíveis em política externa: os EUA deixaram de se enredar nos problemas do Afeganistão e do Iraque; o responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001, Osama bin Laden, foi morto por soldados americanos; o reatamento com Cuba desanuviou as relações hemisféricas; o Tratado de Viena pôs fim a 12 anos de impasse sobre o programa nuclear iraniano; um amplo acordo para conter o aquecimento global foi obtido em Paris, graças em grande parte ao entendimento entre Washington e Pequim.
Trump ameaça desmontar algumas dessas conquistas, em especial o entendimento com Irã e Cuba, e não cumprir o prometido pelos EUA sobre as mudanças climáticas. Tem afirmado que vai "renegociar" os termos do acordado com Teerã e Havana. E, como o que foi acertado em Paris sobre aquecimento global depende de cada país cumprir o que prometeu, não fará aquilo que Obama disse que os EUA fariam.
Outro enorme avanço diplomático do governo Obama, a negociação do TPP (Trans-Pacific Partnership), o mega-acordo de livre comércio de 12 países do círculo do Pacífico (inclusive China, Japão, Canadá, México), dificilmente se materializará com a participação dos EUA.
A proposta final foi assinada em fevereiro de 2016, após sete anos de tratativas complicadas. Em novembro passado, depois da eleição de Trump, o presidente Obama anunciou que não iria encaminhar o acordo para o Senado a fim de aprová-lo. Trump promete liquidar com o acordo imediatamente.
Não é só de sucessos o balanço possível da política externa de Obama. Sua doutrina de "liderar de trás", pela qual esperava exercer influência decisiva nas áreas de conflito do mundo sem empenhar tropas americanas no combate direto, foi muito criticada pelos desastres na Líbia e na Síria.
O número de soldados americanos em ação no Oriente Médio caiu de 185 mil para 15 mil. Mas as ações para desmantelar o Estado Islâmico não estão sendo bem-sucedidas, pelo menos por enquanto. Muitos acham que a doutrina se revelou omissa e ineficaz em relação aos avanços da Rússia contra a Ucrânia e aos progressos nucleares da Coreia da Norte, assim como sobre como lidar com a crise humanitária dos refugiados.
Obama não logrou nenhum resultado significativo na tentativa de obter entendimento entre Israel e palestinos. Suas desavenças públicas com o premiê israelense Benjamin Netanyahu travaram a possibilidade de avanço que poderia advir do acordo que neutralizou a ameaça nuclear iraniana.
Apesar de ter-se comprometido com a missão de afastar do mundo a possibilidade de uma catástrofe nuclear em seu discurso de aceitação do Nobel da Paz em 2009, Obama não obteve grandes vitórias nesse campo, exceto o Tratado de Viena sobre o Irã.
Sua administração reduziu os estoques de armas nucleares dos EUA menos do que todas as anteriores. Até ao contrário, seu governo empenhou um orçamento de US$ 1 trilhão em 30 anos para modernizar e ampliar armas, submarinos, mísseis e bombardeiros nucleares.
Essa política foi parte de um tácito entendimento entre o presidente e os comandos militares, que sempre o viram com desconfianças e, no início do governo, até com aparente hostilidade.
Políticas sociais
O mais importante programa social do governo Obama foi a Lei de Proteção e Cuidados Acessíveis ao Paciente, conhecida como Obamacare, e também a que provocou mais controvérsia e polêmica.
Foi a outra grande vitória legislativa do presidente nos dois anos em que teve maioria no Congresso (além da Dodd-Frank) e o mais ambicioso projeto social desde os tempos de Lyndon Johnson na década de 60.
Graças a ela, a porcentagem de cidadãos americanos sem nenhum plano de saúde foi reduzida quase à metade: de 16% em 2010 para 8,9% em junho de 2016.
Embora não chegue perto das características do sistema público de seguro-saúde dos países da Europa Ocidental ou do Canadá, seus inimigos o estigmatizaram como um projeto de matiz socialista e o utilizaram como argumento para provar que Obama é esquerdista ou mesmo comunista.
Trump prometeu durante a campanha que iria acabar com o Obamacare a partir do seu primeiro dia na Casa Branca. Deputados republicanos já estão tomando iniciativas na Câmara para atingir esse objetivo.
No entanto, isso não será tão fácil como parecia nos discursos eleitorais. A vantagem republicana no Senado é mínima (duas cadeiras) e a bancada democrata na Câmara tem poder de obstrução. Além disso, desfazer toda a burocracia montada pelo Obamacare pode levar meses ou anos.
As iniciativas de Obama com vistas a uma ampla reforma legislativa no sentido de legalizar a situação de imigrantes em situação documental irregular fracassaram no Congresso.
Por meio de ações executivas (de iniciativa exclusiva da Presidência), ele garantiu a permanência legal de 45% dos imigrantes nessa situação, mas essas medidas estão sendo contestadas em diversas instâncias do Judiciário e muitos Estados têm se negado a adotá-las. Trump promete acabar com todas. Um dos temas que mais mobilizou emocionalmente o presidente Obama foi o do controle maior para a venda e posse de armas por cidadãos comuns. Após vários episódios de massacre, especialmente em escolas, ele discursou pela TV para pedir apoio a suas iniciativas.
No entanto, o que conseguiu foram apenas modestíssimas restrições à venda de alguns tipos de armas e poucos cuidados mais detalhados sobre a pessoa que as compra. O Congresso barrou os projetos mais ousados e boa parte da legislação que regula o assunto é de competência estadual. Trump apoia enfaticamente o direito de o cidadão se armar.
O índice de pobreza em 2015 caiu no nível mais rápido em 50 anos, mas está 0,3% acima do que era quando Obama assumiu, um dos vários sinais de que o índice de desigualdade, que vem crescendo nos EUA desde os anos 80, se intensificou na era Obama.
Embora tenha se engajado na campanha um pouco tarde e timidamente, na esteira de seu vice, Joe Biden, Obama garantiu à comunidade homossexual mais direitos do que qualquer outra administração na história. O casamento entre pessoas do mesmo gênero, por exemplo, é agora legal em todo o país.
A comunidade negra americana, sem dúvida, usufruiu de um choque de aumento de autoestima com a eleição e o governo de Obama. Mas seus direitos não foram ampliados significativamente nestes oito anos.
Mais do que qualquer outro grupo étnico, os negros continuam tendo grande dificuldade para votar. O movimento Black Lives Matter demonstrou dramaticamente como negros são vítimas de violência policial injustificada.
O salário médio do trabalhador negro continua menor que o do branco. As prisões se mantêm com porcentagens de negros superiores à deles na população geral. Negros seguem sendo vítimas de discriminação social.
No campo da liberdade de expressão e de imprensa, Obama não se saiu bem. Nos seus oito anos, o governo processou três vezes mais pessoas por vazamento de informação do que todos os anteriores somados.
Ele usou legislação do início do século XX destinada a punir espiões para tentar condenar funcionários públicos que passaram informações à imprensa. O FBI chegou a violar o sigilo telefônico de jornalistas.
Obama indicou duas mulheres liberais para a Suprema Corte em seus mandatos, a primeira latina a integrar o grupo. Mas seu terceiro indicado, para a vaga de Antonin Scalia, que morreu em fevereiro de 2016, nunca foi votado pelo Senado, porque a maioria republicana obstruiu o processo.
Meio ambiente
Uma das últimas ações executivas de Obama, em dezembro passado, foi designar centenas de milhares de acres de terra nos Estados de Nevada e Utah como monumentos nacionais, a fim de preservá-las. Foi uma espécie de coroamento de suas realizações em favor do meio ambiente, um dos setores em que foi mais bem-sucedido. Ele protegeu 533 milhões de acres de terra e água nos oito anos de governo.
Obama foi um dedicado apóstolo da causa do combate ao aquecimento global. Chamou maximamente a atenção do público americano, que em grande parte ainda é cético em relação a esse assunto, sobre a gravidade do tema, que pode colocar em risco a própria sobrevivência da humanidade.
Graças a suas políticas públicas, a quantidade de energia solar e eólica produzida no país aumentou 342% de 2008 a 2016, e as emissões de dióxido de carbono diminuíram 9,4%. O número de pessoas empregadas na produção de energia renovável superou no seu mandato o de funcionários de minas de carvão, o que ajudou Trump a vencer nos Estados onde essa atividade é mais importante para a economia regional (Wyoming, West Virginia, Kentucky e Pennsylvania).
O entendimento entre Obama e Xi Jinping foi decisivo para o sucesso da conferência do clima de Paris. Ali, os EUA se comprometeram a reduzir a emissão de gases de efeito estufa em 80% até 2050, em comparação com os níveis registrados em 2005.
O cumprimento das metas decididas pelas nações e acordadas em Paris depende de cada governo. Donald Trump, que tem reiteradamente dito crer que o conceito de aquecimento global é uma invenção dos chineses para fazer dos EUA um país industrialmente não competitivo, pode ignorar o compromisso assumido por Obama.
O futuro
O legado de Barack Obama depende basicamente de Donald Trump, que promete destruí-lo. Como as ações do novo presidente são absolutamente imprevisíveis, é impossível saber o quanto de fato ele fará para desfazer o que foi deixado pelo antecessor.
Quanto a Obama, que na Presidência sempre foi discreto e contido, ele ainda não revelou o quanto pretende se envolver em política depois do dia 20. Muitos esperam que ele, ao contrário da tradição pela qual ex-presidentes poupam seus sucessores de críticas, se empenhe na oposição a Trump.
Sua mulher, Michelle, que na reta final da campanha por Hillary Clinton despontou como excelente oradora e formuladora de políticas públicas, também pode se sentir impelida a atuar mais na defesa do legado do marido. Muito também dependerá do comportamento do Congresso e do quanto Trump será capaz de manter unida a maioria republicana nas duas casas. O atual embate sobre as agências de inteligência e a influência da Rússia no pleito presidencial mostra que talvez a tarefa não seja muito fácil para ele.
Por fim, o juízo final sobre as realizações e projetos de Barack Obama será dado pela sociedade americana, que lhes negou continuidade em novembro passado, mas terá em 2018 nas eleições parlamentares e em 2020 na presidencial a chance de reverter o resultado de 2016. 

Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor pela USP, mestre pela Michigan State Univeristy e editor da revista "Política Externa"

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