http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u10490.shtml
especial para a Folha de S.Paulo
É
bom começar explicando que o título é esse mesmo, e não "Cosmetologia",
como alguns poderiam imaginar. Sei que misturar ciência e mitologia
deve ser feito com cuidado, e um ensaio curto não é o lugar mais
indicado para tal. De todo modo, meu intuito é provocar a reflexão neste
domingo dedicado ao passado. Algumas das perguntas feitas hoje por
cosmólogos, aqueles físicos que estudam a origem e as propriedades do
Universo, são bem mais antigas do que a própria ciência.
A mais importante, a que poderia ser chamada de "mãe de todas as perguntas", é, claro, a origem de tudo: como surgiu o mundo?
Todas
as culturas tentaram, de algum modo, responder a esse grande mistério.
As respostas, chamadas de mitos de criação, são de uma riqueza
impressionante, narrativas que tentam traduzir como o absoluto virou
relativo, como o uno virou muitos. Por exemplo, para os maoris da Nova
Zelândia, tudo veio do nada absoluto, sem a intervenção de uma
divindade. O cosmo apareceu espontaneamente, uma flutuação surgida do
vazio.
Um mito taoísta diz que no início existia o caos e que do
caos surgiu a ordem, e da ordem condensou-se a terra, como uma gota
d'água nascendo de uma nuvem carregada de umidade. Já a narrativa do
Antigo Testamento descreve a criação como resultado da vontade divina:
"Deus disse "Faça-se a luz" ".
Um estudo da cosmologia do século
20 mostra que algumas das idéias que apareceram em mitos de criação
reaparecem sob o jargão científico. Não, o Big Bang não tem a ver com o
Gênese: a luz descrita na Bíblia não é a explosão do evento que marcou o
início da história cósmica. O Big Bang não foi uma explosão como é
comum imaginar, uma bomba que explode e espalha detritos ao redor. Mais
ainda, uma bomba pressupõe alguém para detoná-la, o que certamente não é
o caso com modelos cosmológicos.
O ponto de encontro entre as
teorias modernas e os mitos é o pressuposto de que a diversidade que
observamos na natureza tem sua origem em um único princípio. No caso dos
mitos, o princípio é uma realidade absoluta de onde surge tudo, seja
ela Deus, os deuses, o nada ou o caos primordial. Já as teorias modernas
sustentam que, no início, as quatro forças fundamentais que regem o
cosmo (gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca)
estavam unificadas numa única, o campo unificado.
O que se sabe
sobre esse campo unificado? Não muito. Einstein passou décadas tentando
desvendar suas propriedades. Centenas de físicos teóricos dedicam suas
carreiras atrás do mesmo objetivo.
Existem indicações
experimentais de que, de fato, as forças começam a se comportar de modo
semelhante em altas energias. Por exemplo, as forças eletromagnética e
nuclear fraca funcionam como uma só nas energias obtidas em colisores de
partículas, máquinas que aceleram partículas a velocidades próximas à
da luz. Mas essas indicações estão longe de ser uma confirmação de que o
campo unificado existe. Será que a física teórica também está
fabricando um mito?
O vencedor do Prêmio Nobel Steven Weinberg,
um dos físicos teóricos mais influentes do mundo, famoso por sua posição
ultra-reducionista, publicou um livro intitulado "Sonhos de uma Teoria
Final". Veja bem, sonhos.
Nele, ao se referir à busca por uma
teoria unificada, Weinberg escreve: "Nós temos de supor que teremos
sucesso. Caso contrário, certamente falharemos".
É um ponto
fundamental. A teoria do campo unificado poderá vir um dia a ser
descoberta. Ou ela pode ser um Cálice do Graal, mitologia. Nesse caso,
seria como uma montanha mágica, cujos contornos podemos ver na
distância, encobertos por brumas. Para chegar até ela, temos de
desbravar território desconhecido.
A exploração desse território é
que gera a nova ciência. Isso ocorre mesmo se montanha alguma existir
no final do caminho, mesmo que ela seja uma miragem. O poder de um mito
não está na sua veracidade, mas na sua credibilidade. Ele sustenta a
criatividade científica, alimentando a coragem de nos aventurarmos por
terras inteiramente desconhecidas.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.