Se a morte de Teori Zavascki e o peso crescente do STF
põem mais uma vez em evidência a fragilidade da nossa (des)ordem
institucional, a conversa de surdos em "looping", tão igual a si mesma
que não faz senão aborrecer e alienar, em que se transformou a discussão
pública do dramalhão nacional mata qualquer esperança de melhora.
Ao
fim de três anos encalhado o País colhe as provas de que o destino do
processo que pode mudar o seu destino não está referido a leis e
procedimentos certos e sabidos nem a respeito de delitos tão elementares
quanto o assalto recorrente aos bens públicos
por agentes do Estado e empresários por eles cooptados. Tudo está
pendente exclusivamente da maneira como houve por bem tratá- los desta
vez, e somente desta vez, o ministro morto, em cujas mãos a
impertinência de um juiz dissonante jogou a sorte dos políticos
denunciados na Operação Lava Jato. E, sendo assim, tornar a sua sucessão
neutra e tranquila como deveria ser se fôssemos regidos por
instituições, e não por pessoas, é uma missão impossível, se não por
todas as outras razões, porque na verdade ninguém sabe exatamente se e
como Teori Zavascki se teria decidido a agir em relação aos seus quase
réus.
Tudo a esse respeito é "segredo de Justiça", expressão que, já de si, é uma contradição em termos.
Havia só vagas indicações sobre o que ele "estaria pensando" em fazer.
Tudo, portanto, pode mudar se mudar o relator, ainda que não mudem os fatos que ele relata.
Sendo
o objeto do processo a nata dos brasileiros "especiais", aqueles que
vivem do e para o Estado e estão acima da lei, a única "providência"
possível, mesmo para as nossas autoridades mais altas e mais
bem-intencionadas, é procurar alguém que "seja parecido" ao ministro
morto em matéria de "pensamento jurídico", seja o que for que tal
expressão queira dizer, o que garante que não existe o menor risco de
que qualquer coisa mude realmente para melhor no final dessa história. A
hipótese menos ruim é que, com a ajuda da sorte, esse incidente não
chegue a fazer tudo piorar muito, como tantas vezes já aconteceu em
episódios semelhantes da História do Brasil.
Nada a estranhar. É essa mesmo a lógica do "sistema corporativista".
Transferir
intacta, de sua majestade para os três Poderes do novo sistema, a
prerrogativa de distribuir a quem lhe interessar pudesse, não mais
títulos explícitos de "nobreza", mas sim "direitos adquiridos" eternos e
frequentemente até hereditários, e encarregar o Poder Judiciário de
"republicanamente" fazê-los valer nos seus tribunais, em vez de
simplesmente no cadafalso como ocorria antes, foi o artifício com que a
elite em torno do imperador exorcizou a revolução democrática que varreu
o absolutismo da Europa e castrou a República que tentou se insinuar ao
Brasil.
A "Nova República", a partir de 1988, apenas deu a
última forma à velha aberração. Desde então a "privilegiatura" saiu do
armário e a própria "Constituição da República" passou a ser
oficialmente o repositório dos seus "direitos adquiridos", dos
mecanismos que automatizam a sua contínua expansão e das "pétreas"
garantias da sua intocabilidade.
Assim como sua congênere
norte-americana, o modelo de onde tiramos a nossa, a Suprema Corte tem
por função avaliar a consonância de todos os atos dos outros dois
Poderes e mais os das instâncias inferiores do próprio Judiciário com a
Constituição. O problema é que a Constituição americana, com 230 anos,
tem sete artigos e 27 emendas, todos definindo exclusivamente quais são
os direitos de todos ficando tudo o mais fora da lei, e a brasileira,
com 29 anos, tem 250 artigos e 93 emendas, quase todos definindo aquilo
que é apenas de alguns, em aberta contradição com os Princípios
Fundamentais que enuncia no primeiro dos seus nove capítulos, o único
que guarda algum parentesco com ideais democráticos autênticos.
É um falso problema, portanto, o tão criticado "protagonismo" do STF
que um poder Legislativo desmoralizado invoca na sua disputa de poder
com o Judiciário e em torno do qual a imprensa e seus "especialistas" de
plantão, ingênua e infindavelmente, "batem caixa".
Assim
como é uma completa perda de tempo qualquer tentativa de cerceá-lo sem
tocar na sua causa estrutural, pois o "protagonismo" não é da Corte, é
da Constituição, e tudo acabará sempre obrigatoriamente no Supremo se
tudo e mais alguma coisa continuar podendo ser enfiado na Constituição.
Tudo,
no drama brasileiro, está referido a essa mutilação essencial que fez
da nossa tão propalada "democracia" um falso brilhante. Passados 118
anos de distribuição desenfreada desses privilégios cá está o Brasil,
como era típico de todo o sistema feudal e pelas mesmíssimas razões,
estertorando na miséria, enquanto a Corte onde tudo o mais anda sempre
tão devagar passa lei atrás de lei a favor de si mesma, como se vivesse
em outro planeta. Em pleno século 21 e com a democracia moderna, que foi
inventada justamente para acabar com isso, comemorando o seu 241.º
aniversário, não conseguimos superar sequer as angústias e incertezas
vividas pelos súditos das monarquias desaparecidas desde o século 19,
nas quais a morte do rei impunha a todos o que a sorte decidisse sobre a
personalidade do herdeiro do trono, com a diferença de que hoje não
temos rei, temos reis.
Não adianta sonhar com a redução da
corrupção sem tocar na indemissibilidade do servidor público e no
condicionamento da duração dos mandatos dos representantes eleitos
estritamente à satisfação dos seus representados. Não adianta tentar
impedir a manifestação dos efeitos sem tratar de remover as suas causas.
Enquanto não nos decidirmos a banir da Constituição e da nossa ordem
legal como um todo tudo o que nelas está em contradição com o princípio
da igualdade de todos, em direitos e em deveres, perante a lei,
continuará sendo ilegal tornar sustentável a economia e inconstitucional
fazer justiça ou dar os passos necessários para extinguir a miséria no
Brasil.
Não existe o menor risco de que qualquer coisa realmente mude para melhor...
JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
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