Valor Econômico - 03/03/2016
Gerou controvérsia a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no habeas corpus 126.292 que, por maioria de sete votos a quatro, alterou a jurisprudência da Corte, para fins de considerar que o princípio da presunção de inocência, inscrito no art. 5º, LVII, da Constituição, não mais impede a antecipação do cumprimento da pena, ainda que na pendência de recursos extraordinário ou especial.
Em sendo assim, o trânsito em julgado da decisão condenatória, que traduz a certeza definitiva da culpabilidade, deixa de ser requisito para o início da execução da sentença criminal. Argumenta a maioria vencedora (ministros Teori Zavaski, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes) que a condenação em segundo grau de jurisdição é suficiente para definir a culpabilidade com base nas provas produzidas nas instâncias de origem. De outro lado, a minoria vencida (ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber) sustentou que a presunção de não culpabilidade há de subsistir até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Penso que a melhor razão está com a facção vencida. A rigor, essa questão já havia sido enfrentada pelo STF no julgamento acerca da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) pelas ADCs 29 e 30 e ADI 4578.
Não se ignore a situação deplorável do sistema prisional. Nossa população carcerária, segundo dados do CNJ, já atinge 711.463 presos
Naquela oportunidade, a Corte Suprema entendeu que a inelegibilidade pode ser declarada após decisão de órgão judicial colegiado, tendo em vista a proteção constitucional da probidade e da moralidade administrativa para o exercício do mandato, além da vedação ao abuso do poder econômico e político nas eleições. Esses princípios constitucionais serviram, mediante o esquema exegético da ponderação de interesses, para mitigar o postulado da presunção de inocência, sob pena de se conferir mandato eletivo a quem tenha atentado contra a legitimidade das eleições. Todavia, no caso das condenações criminais sem trânsito em julgado, nada há a ponderar, uma vez que a Constituição não condiciona a presunção de inocência a qualquer outro contra valor constitucional. De forma direta e categórica é vedada a execução provisória da pena, pois o que está em jogo é o bem maior da liberdade de ir e vir.
Releva contextualizar a divergência dos ministros do STF no atual quadro de crise que abala o nosso país. A secular deformação moral de nossas instituições, não apenas da classe política, mas também no espaço privado, se exasperou em meio a tantos escândalos (Mensalão, Lava-Jato, Operação Zelote), o que tem gerado a desilusão da população nos agentes do Estado e nas forças da sociedade civil para implementar pautas de comportamento ético e construtivo que engrandeçam a nação. A percepção popular é de que há corrupção por todos os lados e de que o Brasil está atolado num mar de lama.
O bombardeio diário de notícias cada vez piores gera reações revanchistas, o que trivializa as garantias constitucionais, com grave prejuízo para a cidadania. Nessa catarse de decepções acumuladas, o juiz Sérgio Moro e o "japonês da Polícia Federal" passam a ser estrelas no pódio do desencanto nacional. A instigação midiática dos instintos primitivos da vindita humana libera os ímpetos de ruptura com os ritos constitucionais democráticos. Faz com que a Constituição seja tratada como uma "soft law", manipulável ao sabor dos humores do dia. O STF, que é a última trincheira dos direitos humanos, não pode ser pautado pelo clamor das ruas ou pelo "xerifismo hollywoodiano". A ser assim, daqui a pouco irão pelo ralo na sanha acusatória, sob o aplauso das massas desiludidas, os princípios e valores do processo civilizatório, como o do contraditório, da ampla defesa, das prerrogativas dos advogados e da presunção de inocência. Cairemos no vale-tudo dos linchamentos liminares e dos pré-julgamentos pela mídia e redes sociais.
Algumas premissas objetivas devem ser consideradas nesse debate. O ordenamento jurídico já prevê as condições em que os suspeitos de práticas criminosas podem sofrer prisão temporária e preventiva, para resguardo da investigação criminal, da ordem pública e econômica. A interposição de recursos procrastinatórios já se acha inibida pela legislação processual e pela jurisprudência dos tribunais.
Além disso, a estatística demonstra que 25% dos julgamentos nos tribunais superiores reformam decisões das cortes de segunda instância. Assim, a prisão de réus antes do trânsito em julgado da condenação poderá ensejar indenizações a cargo do Estado no caso de absolvição final, como bem aventou o ministro Marco Aurélio, do STF. Por fim, não se ignore a situação deplorável do sistema prisional. Nossa população carcerária, segundo dados do CNJ, já atinge 711.463 presos, dos quais 147.937 em prisão domiciliar, que constitui a terceira maior do planeta. Estão disponíveis cerca de 1.430 unidades prisionais em todo o país. Em cada espaço reservado para dez presos agonizam quase o dobro. Sem esquecer que as prisões são horripilantes, onde tudo pode acontecer, menos a integridade física e moral dos detentos, muito menos a ressocialização dos apenados.
Carlos Roberto Siqueira Castro é professor titular de direito constitucional da UERJ, doutor em direito público e conselheiro federal da OAB.
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