quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Juiz Luís Carlos Valois: "A prisão não serve para nada"

Magistrado defende descriminalização das drogas
VALOR ECONÔMICO:  11/01/2017
Valois: "A cultura no Brasil é que a prisão é só segregação. É depósito de seres humanos. A prisão não é resultado de nenhum experimento científico. E se foi, foi falho" Juiz de Execuções Penais há 17 anos, Luís Carlos Valois se colocou no epicentro da crise carcerária em Manaus, que resultou na morte, até o momento, de 64 custodiados. Valois esteve no Complexo Penal Anísio Jobim (Compaj) durante a revolta do domingo, chamado pelo secretário de Segurança Pública Sérgio Fontes para negociar o fim do motim. O magistrado, de 49 anos, notabilizou-se por uma declarada proximidade, com os presos, com os quais já jogou bola. Ele também doou livros para a biblioteca de prisão, treinou judô com os detentos e participou até de sessões de terapia de grupo com os encarcerados, segundo suas palavras. Valois é alvo de uma investigação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois que seu nome foi mencionado em conversas de presos interceptadas pela Operação "La Muralla", da Polícia Federal, de 2015. Nos diálogos, presidiários ligados à facção criminosa Família do Norte (FDN) manifestam preocupação com a possibilidade de o magistrado deixar a Vara de Execução Penal e discutem como poderiam pressionar Judiciário e governo estadual a mantê-lo no cargo. Por ora, não há evidência de envolvimento do juiz com os criminosos. Valois nega qualquer relacionamento com a FDN.
Nesta entrevista ao Valor , Valois, que supervisiona 14 mil processos com o apoio de apenas oito funcionários, reconheceu já ter despachado favoravelmente a um preso dentro da própria penitenciária, sem ouvir manifestação do Ministério Público sobre o pedido. "Eu levo o meu notebook para dentro da penitenciária. Sento com eles, abro o processo. Eles formam uma fila gigante e eu os informo sobre o andamento. Quando eu vejo um absurdo eu solto na hora, sempre fiz isso", afirmou. Eis os principais trechos da entrevista concedida em seu gabinete, decorado com pôsteres de filmes com temática prisional, como "Papillon", "Birdman of Alcatraz", "Carandiru" e "Salve Geral".
Valor: Já aconteceu de em uma dessas ocasiões o senhor soltar o preso com decisão de ofício mesmo?
Luís Carlos Valois: Já, de ver que há um absurdo ali envolvendo a prisão dele e soltar. É comum a pessoa já ter tempo de prisão em regime fechado para progredir para o semiaberto, por exemplo, e aí está faltando um parecer do Ministério Público ou algo assim. Aí eu vejo o processo, pego e solto mesmo. Deixa o Ministério Público se manifestar com ele solto. É uma medida cautelar que eu adoto. Não é nada do outro mundo, mas é um direito do preso.
Valor: O problema de superlotação de presídios não é exclusividade de Manaus. A que o senhor atribui isso? É uma cultura de encarceramento?
Valois: A cultura no Brasil é que a prisão é só segregação. É depósito de seres humanos. Deveríamos fazer as coisas de maneira racional, de preferência científica. A prisão não é resultado de nenhum experimento científico. E se foi, foi falho. A prisão não serve para nada, nada, nada. Sabe como é que nasceu a prisão? Antigamente as pessoas eram enforcadas, queimadas, guilhotinadas, chicoteadas. Tinha várias penas que não eram a de prisão. Mas para o cara ser condenado a uma dessas penas, ele tinha que ficar esperando na prisão. E essas penas foram acabando por causa da sensibilidade da sociedade industrial, da Revolução Francesa, elas foram acabando. E os caras foram sendo esquecidos. A prisão nasceu por acaso. E agora, então, o que vamos fazer? vamos decidir que o cara então vai ficar lá [na prisão] cinco anos. Não vamos poder matar, então ele fica cinco anos, não é nenhum resultado de pensamento científico. Imagine que pessoas diferentes cometam um crime, cada uma em um lugar. Aí pega essas pessoas e colocam presas no mesmo lugar para ficarem conversando. Olha que absurdo!
Valor: O que fazer então com um latrocida violento, por exemplo?
Valois: O que acontece é que hoje a gente não pensa em tecnologias para isso. Tem chip, tornozeleira eletrônica. Qualquer coisa é melhor do que a prisão. Até não se punir o cara. Preste bem atenção: se a gente parasse de prender as pessoas, todo mundo, de uma hora para a outra, daqui a 50 anos teríamos menos crimes. Olha que absurdo. Então a gente está fazendo uma coisa para aumentar a criminalidade. "Ah, mas ele não vai ser punido?". Não posso punir, porque senão vai aumentar a criminalidade. O nosso sentimento de punição é maior que a nossa racionalidade. Bota um capacete no cara, com luz piscando, sei lá. Mas botar numa prisão com outros bandidos é uma coisa idiota.
Valor: O senhor e a desembargadora Encarnação das Graças Sampaio Salgado, do Tribunal de Justiça do Amazonas, são investigados pelo Superior Tribunal de Justiça porque foram citados nas investigações da Polícia Federal sobre a facção Família do Norte. O que o senhor diz sobre essas suspeitas?
Valois: Eu não tenho muito o que falar, os presos falam bem de mim nas gravações porque sempre tive o respeito de todos os pre- sos. Quer dizer, se fosse o [Primeiro Comando da Capital, facção que controla os presídios em São Paulo] PCC era o PCC, se fosse a FDN era a FDN. Por isso que eu estou dizendo, trato os presos de modo igual, com respeito. E a polícia está na batalha, na guerra do dia a dia, com combate e mais não sei o quê. Na Polícia Federal normalmente são pessoas de fora que vêm para cá e não sabem do meu trabalho. E aí veem um juiz sendo citado no meio de uma interceptação telefônica, e a investigação não era sobre mim, era sobre outra coisa, e aí ouviram os advogados falando com os presos... Se tudo aquilo fosse verdade, ainda assim não teria crime algum [na gravação os presos falam em fazer um abaixo assinado para manter Valois na Vara de Execução Penal, porque teriam ouvido comentários sobre uma suposta intenção dele de deixar o posto].
Valor: Mas lendo o relatório policial, tem-se a impressão de que a sua manutenção no cargo facilitaria a vida dos presos...
Valois: Pois é, mas eu nunca estive ameaçado de sair daqui. Na verdade os presos confundiram o meu pedido para me afastar para fazer meu doutorado em São Paulo com uma intenção de sair. Eu acho que eles resolveram me investigar, só que a medida foi muito rigorosa, entendeu? Mas, olha, eu nem fui afastado [do cargo]. Não existe isso de juiz suspeito em atuação, entendeu? Eu estou atuando, sou juiz da execução. Eu sou um juiz que foi investigado. Se eu fosse suspeito eu teria que ser afastado. Quer dizer, é uma investigação normal, tem de ser investigado mesmo. Eles não me conhecem, não sabem quem sou. Eu acho que eles [os policiais] deveriam ter se informado melhor, colhido mais informações antes de me colocar nessa jaca aí, entendeu?
Valor: O que é possível fazer, em termos penitenciários, enquanto estamos todos no meio de uma guerra de facções criminosas? Separar os presos surte efeito?
Valois: Separar os presos é contra a lei, inclusive. A lei prevê a separação por tipo de crime, por idade, a Constituição diz isso, inclusive. Então, botar todos os criminosos de uma facção pra cá e todos os de outra pra lá é contra a lei. Eu sou a favor de cumprir a lei. E já pensou fazer uma lei dessa, determinando a separação de presos por facções? Que ridículo que ia ser para o Brasil?
Valor: O senhor tem uma posição pessoal de ser contra o enfrentamento do Estado às drogas. Na sua opinião, a liberalização das drogas seria uma solução para o crime?
Valois: Resolver, não resolveria, numa sociedade com desigualdades sociais deste jeito. Inclusive, muitas dessas pessoas [traficantes de drogas] iam migrar para outros crimes. Mas, ao mesmo tempo, a polícia, que fica apenas na operação antidroga, teria mais tempo para investigar outros crimes. Hoje você é assaltado, vai à delegacia e recebe um BO [boletim de ocorrência]. Matam um familiar teu, tu vais lá e recebe um BO. Ninguém investiga mais nada. Por quê? Porque a polícia vai à esquina, pega o cara com 10 trouxinhas de droga e ela está trabalhando, mas não investiga mais nada. A polícia fica só fazendo blitz. Essa é a atividade da polícia brasileira atualmente. Eu não gosto nem de falar de descriminalização, gosto de falar de regulamentação. Porque droga tá tudo liberado aí. Acha que a polícia não sabe onde estão vendendo as drogas? E o que está havendo com isso? Mortes e mais mortes. O Estado deveria era ganhar um dinheiro com isso, ia retirar o financiamento do crime organizado. A única coisa ruim da droga é a própria droga em si. Eu não vejo nada de ruim na descriminalização, absolutamente nada. Só vejo coisa boa. Vai sobrar muito mais dinheiro, investimento e efetivo policial para outros crimes. Vai ter muito mais dinheiro para tratamento de viciado.
Valor: Mas hoje, no Brasil e no mundo, os tráficos de drogas e de armas andam juntos, quase se complementam...
Valois: Então imagine, tirar esse financiamento aí todo. Porque o grande problema da violência é o problema do varejo. O atacado está aí, andando de helicóptero. O atacado não está atingido por essa política de repressão. E o varejo quer a regulamentação, mas o atacado não quer.
Valor: O que o senhor quer dizer com atacado?
Valois: Ninguém sabe quem é o atacado, ele anda de helicóptero, de jatinho. Tu achas que o traficante brasileiro é Fernandinho BeiraMar [líder do Comando Vermelho, no Rio] e Marcola [líder do PCC]? Acha? Cadê os helicópteros deles? Cadê o helicóptero do Zé Roberto [líder da FDN], que mora em uma periferia aqui em Manaus? O Fernandinho Beira-Mar morava na favela. Acha mesmo que esses são os traficantes brasileiros comandando o tráfico brasileiro? E apareceu um helicóptero com meia tonelada de cocaína no Brasil e a gente fica achando que são eles os traficantes. É muita ingenuidade, né? [o juiz se refere à apreensão de um helicóptero com 445 kg de cocaína em Minas Gerais, em 2013, durante ação da PF A aeronave pertence a uma empresa do ex-deputado estadual mineiro Gustavo Perrella].
Valor: O senhor então considera o combate às drogas uma hipocrisia?
Valois: Não uma hipocrisia, mas algo alienante. Você fica enxugando gelo para fazer de conta que está fazendo alguma coisa enquanto o tráfico real, milionário, de milhões e milhões de dólares está circulando no "alto clero". Veja um exemplo: bancos abriram caixas eletrônicos específicos no México para distribuir dinheiro dos Estados Unidos, sabendo que o dinheiro era originado do tráfico. E ninguém foi punido. Houve uma CPI nos Estados Unidos, indiciaram os gerentes dos bancos. O gerente do banco foi punido. A gente está tapando o sol com a peneira com essa guerra às drogas. E é difícil defender a descriminalização das drogas, porque as pessoas dizem logo: "ah, esse cara é maconheiro".
Se a gente parasse de prender as pessoas de uma hora para a outra, daqui a 50 anos teríamos menos crimes" Separar os presos é contra a lei. Botar todos os criminosos de uma facção pra cá e todos os de outra pra lá é contra a lei" Valor: O senhor já foi chamado de maconheiro?
Valois: Já, já. Porque eu cheguei em Londres e vi que tinha um energético feito de cannabis [maconha]. Daí eu bati uma foto e eu não bebi, só fingi que estava bebendo para bater a foto. E nem comprei aquela merda, que eu nem gosto de energético. E é um energético, tem efeito oposto ao da maconha. Ai eu postei no Facebook, "olha que absurdo, conseguem fazer um energético de maconha, podiam fazer muito mais coisas em vez de ficar encarcerando as pessoas"".
Valor: O senhor usa algum tipo de droga?
Valois: Não, nunca usei. Nem beber eu bebo. Fui atleta a vida inteira. Apesar de que no esporte tem um monte de gente que usa maconha. Se você andar em Ipanema, vai ver muita gente fumando maconha. Na Avenida Paulista, nas passeatas durante os movimentos de 2013, todo mundo fumando maconha. No próprio movimento contra a corrupção gente fumando maconha. Eu sou doido por que eu falo a verdade? É impressionante isso. Não consigo ser irracional.
Valor: O senhor é considerado um juiz ativista...
Valois: Quando eu digo que sou a favor da regulamentação de todas as drogas, eu estou pensando diferentemente do traficante.
Valor: Como lidar com organizações criminosas violentas como a FDN e o PCC? Essas pessoas podem ser reeducadas, ressocializadas?
Valois: Eu acho que até tu, com aquela violência da prisão, pode perder o limite para tudo. Muitas dessas pessoas não fariam ou não vão fazer isso em liberdade. A prisão leva àquilo. O medo, o terror, a ignorância, o ódio. É tudo misturado ali. Por exemplo, uma guerra. O soldado pai de família, tem o filho dele que ele leva à escola, a esposa que ele beija toda noite. Ele é convocado para a guerra e ele estupra, ele mata, ele corta a cabeça, ele faz o escambau lá dentro. Acabou a guerra ele continua com a vida dele normal. A prisão é uma guerra. É violência 24 horas por dia, a prisão. Não é natural ficar atrás de grades. Não tem como a gente avaliar aqui de fora.
Valor: E a pessoa submetida a isso tem como ser reinserida na sociedade?
Valois: Depende dela. Vou te dar um grande exemplo. Malcolm X [ativista negro americano, assassinado em 1965]. Ele foi preso por um assalto e ele era analfabeto. Na penitenciária em que ele ficou não podia ter livro. Ele traficava livro, à noite ele esperava um guarda acender a luz da sala dele para aproveitar um raio de luz para enxergar e aprendeu a ler assim na penitenciária. Saiu de lá e virou um grande líder revolucionário negro nos Estados Unidos. Foi a prisão que ressocializou Malcolm X? Quer dizer, esse pensamento de mudar funciona com, sem ou apesar da prisão. Depende da pessoa. Mas é sempre apesar da prisão quando acontece, porque a prisão não está auxiliando nisso.
Valor: Então é um equívoco pensar que a prisão ressocializa?
Valois: Claro. Até do Big Brother, que é um lugar com um monte de mulher bonita, o cara quer sair.
Valor: O senhor acha que nessa questão dos presídios e do crime organizado está se dando pouca atenção ao problema da corrupção do Estado?
Valois: O Estado não serve para nada. Às vezes eu falo assim a pessoa pensa, "pô, esse cara é um liberal". Mas Marx nunca gostou do Estado. A sovietização do marxismo é um fenômeno. O Estado, onde esteve, nunca foi boa coisa não. Todos os países socialistas tiveram movimentos de defesa dos direitos humanos contra violência do Estado como os países capitalistas também. O Estado é um problema.

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