Jornal dos
Economistas / Janeiro 2017 - Francisco Carlos Teixeira Da Silva*
No auge da Guerra Fria (1945- 1991), as grandes potências – Estados
Unidos, União Soviética e a então misteriosa e fechada China Popular – chegaram
a um entendimento “tácito”, nada acordado num mesa ou na ONU, simplesmente protocolos
para evitar uma hecatombe nuclear, como poderia ter acontecido em Cuba em
outubro de 1962. Manteve-se a aguda rivalidade entre as grandes potências, mas
foram reduzidos os riscos da guerra nuclear.
A sombra da Guerra do Vietnã (1965-1975) era,
então, fortemente presente. De um lado, o horror do povo americano em face das
cenas de crueldade derivadas da guerra e a chegada maciça dos black bags com os corpos dos “garotos” mortos na selva da Indochina. Por
outro lado, Washington, Moscou e Beijing tornaram-se agudamente conscientes do
risco de um erro, de perda de controle ou de um mero acidente desencadear a
última guerra da humanidade. Assim, sem desistir da intensa luta pela
supremacia mundial, as grandes potências acordaram criar mecanismos, instituições
e fórmulas para evitar “… um lapso momentâneo da razão”.
O fim da Guerra Fria, com a desintegração da
União Soviética em 1991, concomitante à tentativa de domínio mundial dos
Estados Unidos, ao lado da incontornável ascensão da China Popular, acarretou
adaptações e complementações a este sistema precário de manutenção da paz.
Depois de 1991 pode-se dizer que, desde então, temos um “sistema”, que bem ou
mal – e em casos como o Afeganistão, Síria, Líbia, Somália entre outros foi
bastante mal – funciona ao evitar um choque entre grandes potências. Guerras híbridas
ou por procuração substituíram a possibilidade de choque direto. O sistema, com
tais ressalvas, mantém-se em funcionamento. Ao menos se temos em vista que o
objetivo maior é evitar uma guerra nuclear global.
Num mundo armado com cerca de 8.500 ogivas
nucleares russas, 7.700 norte-americanas, enquanto a China Popular possui entre
270 e 432 ogivas nucleares, outras 298 ogivas francesas, mais 225 britânicas,
as possíveis 75 ogivas israelenses (alguns falam em até 400), juntando-se as 90
até 110 indianas e as 110-120 ogivas paquistanesas – sem falar no mistério e
blefe constantes da Coreia do Norte, com possíveis 20 armas (mas, sem um
sistema de vetores que seja seguro para atingir alvos determinados) – temos que
admitir que o sistema de “paz armada”, com os corolários de dissuasão mútua e risco
de destruição mútua assegurada foram elementos – não os ideais, é claro – eficazes
de garantia de paz.
Este sistema mundial, depois de 1991,
equilibrou-se sobre alguns elementos-chave, que foram respeitados, até o
momento, por todas as nações relevantes (no sistema de poder mundial) e para a manutenção
da paz e na dissuasão de uma hecatombe nuclear global. Assim, são pilares que sustentam
precariamente o atual equilíbrio mundial:
A política, estabelecida desde Henry
Kissinger, durante a Administração de Richard Nixon (1969-1974), de “uma só
Nação chinesa e dois Estados”, com o acordo que a busca por parte de Beijing da
unificação nacional é justa e deve ser feita através de meios pacíficos. Tal
política permitiu o acesso de Beijing ao Conselho de Segurança da ONU e a abertura
comercial da China, que a tornou um dos pilares do equilíbrio e da prosperidade
mundial;
A plena confiança dos países da Europa
Ocidental, e depois de 1991 dos ex-membros do Pacto de Varsóvia, então dirigido
por Moscou, na validade do Artigo 5 da OTAN, pelo qual os Estados Unidos seriam
garantes da integridade dos países europeus em caso de uma “agressão russa”;
Pacto de Segurança e Assistência Mútua entre
o Japão e os Estados Unidos, assinado em 1951, em plena recuperação industrial e
tecnológica nipônica, que estendeu o “Guarda-Chuva Nuclear” americano sobre as
ilhas nipônicas e, por esta via, assegurou que Tóquio não desenvolve um arsenal
nuclear próprio, capaz de desafiar e subverter o equilíbrio militar na
Ásia-Pacífico;
A extensão do Tratado de Não Proliferação
Nuclear, TNP, ao conjunto dos países, impedindo não só a proliferação nuclear em
escala mundial, mas ainda, evitando que armas de destruição em massa passassem
para mãos de estados “irresponsáveis” ou mesmo, como em tantos roteiros hollywoodianos,
caíssem em mãos de organizações terroristas. Nem sempre aceito, como nos casos
que veremos abaixo, mas suficientemente forte para impedir que países como a
Alemanha e Japão, como também Brasil, Argentina, África do Sul, Turquia – todos
com capacidade nuclear – desenvolvessem arsenais nucleares, tornando o mundo ainda
mais complicado – e, claro, garantindo a tutela das potências atômicas;
O apadrinhamento pelos Estados Unidos (e
agora pela China Popular) de um Paquistão nuclear – um dos “furos” do TNP –
assegurando através de ajuda e cooperação econômica que o país não seja
ameaçado em sua existência pela Índia; da mesma forma, o apadrinhamento desta
pela então URSS, e hoje pelos mesmos Estados Unidos, e aceitando sua
transformação em uma potência nuclear relevante, mas cooperando e ajudando
Délhi e Islamabad a evitarem um conflito nuclear que, imediatamente, transformar-se-ia
no maior desastre humanitário da história. Assim, um equilíbrio entre Índia e
Paquistão tornar-se-ia um dos pilares do sistema mundial de poder;
A garantia da segurança do Estado de Israel,
através de programas constantes de ajuda militar e de cooperação estratégica (e
uso do veto no Conselho de Segurança da ONU), embora ressaltando a necessidade
de Jerusalém manter-se como uma cidade dividida, com sua porção palestina, e a
criação de um (mini) Estado Palestino minimamente viável (contra a colonização
de territórios palestinos), sem ser, contudo, uma ameaça futura a Israel.
Vemos, assim, que tais “pilares” são
estratégicos e, ao mesmo tempo, bastante instáveis. Qualquer alteração não
negociada ou a ascensão de novas potências, mesmo regionais, não comprometidas com
tal agenda, como no caso do Irã e da Coreia do Norte (e muito provavelmente no
caso do Brasil e da Turquia, alvos de “desconstrução” interna visando manter
ambos abaixo da linha da relevância no cenário mundial) seria um passo para a crise
do sistema global.
A eleição de Donald Trump, um notável outsider, desconhecedor do ambiente acadêmico de relações internacionais,
de história e ciência política, além de totalmente estranho ao mundo da “finesse”
diplomática – mas atento às bravatas de militares afastados pelas
administrações Clinton e Obama e/ou desmoralizados pelas derrotas da
administração Bush (júnior) – emerge como um período de turbulência e de
possíveis crises do sistema mundial de equilíbrio de poder.
É bem verdade que o sistema mundial já estava
em crise à revelia das idiossincrasias de Trump. O “excedente de poder” nas
mãos de Washington, aliado e decorrente da derrota da URSS na Guerra Fria,
permitiu uma busca pouco racional, por parte de Washington, de uma improvável
hegemonia mundial. Assim, a multiplicação de guerras localizadas (Afeganistão,
Iraque, Síria, Somália, Iêmen, entre outras) permitiu e fomentou um terrível
radicalismo dito “jihadista”, com resultados dramáticos nos diversos atentados terroristas.
Algumas nações, como a Coreia do Norte e Irã, sentiram-se na obrigação de
buscar armas de destruição em massa como “equalizadores de poder” frente à
ameaça estadunidense; enquanto isso, outros, como a nova Federação Russa ou a
China Popular, se viram “cercados” pelos Estados Unidos e a seu braço armado, a
OTAN. Assim, a algidez dos conflitos atuais – Ucrânia, Síria, Coreia do Norte e
a tensão crescente no Mar do Sul da China – é o exato resultado da busca de
Washington por manter sua supremacia mundial – ameaçada pela emergência de
novas potências, pela continuidade da crise econômica mundial e pelo
envelhecimento do parque industrial americano.
O Programa de Trump, America First, é o remédio geral, ou talvez um placebo, para
todos estes desafios. No entanto, ao buscar e confundir estratégia e tática –
como na tentativa de chantagear Beijing no plano comercial com a ameaça de
reconhecer Taiwan como um país de pleno direito, a ameaça de romper os acordos
com o Irã, de mudar a embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém e, por fim,
desdenhar do Artigo 5 do Pacto do Atlântico – plantou a semente da confusão e
da balbúrdia no sistema mundial.
Claro, é sabido como é firme e conservador o establishment político de Washington e os lobbies militares, energéticos e de serviços dos Estados Unidos. Seriam capazes
de “domesticar” Trump? Este é um grande desafio para o sistema de poder e a
forma de governo dos Estados Unidos. Qual o alcance de tal desafio só saberemos
nos cem dias depois de 20 de janeiro de 2017.
* É professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército do Brasil (ECEME).
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