segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Trump e a ordem mundial (Francisco Carlos Teixeira Da Silva)



Jornal dos Economistas / Janeiro 2017 -  Francisco Carlos Teixeira Da Silva*

No auge da Guerra Fria (1945- 1991), as grandes potências – Estados Unidos, União Soviética e a então misteriosa e fechada China Popular – chegaram a um entendimento “tácito”, nada acordado num mesa ou na ONU, simplesmente protocolos para evitar uma hecatombe nuclear, como poderia ter acontecido em Cuba em outubro de 1962. Manteve-se a aguda rivalidade entre as grandes potências, mas foram reduzidos os riscos da guerra nuclear.

A sombra da Guerra do Vietnã (1965-1975) era, então, fortemente presente. De um lado, o horror do povo americano em face das cenas de crueldade derivadas da guerra e a chegada maciça dos black bags com os corpos dos “garotos” mortos na selva da Indochina. Por outro lado, Washington, Moscou e Beijing tornaram-se agudamente conscientes do risco de um erro, de perda de controle ou de um mero acidente desencadear a última guerra da humanidade. Assim, sem desistir da intensa luta pela supremacia mundial, as grandes potências acordaram criar mecanismos, instituições e fórmulas para evitar “… um lapso momentâneo da razão”.

O fim da Guerra Fria, com a desintegração da União Soviética em 1991, concomitante à tentativa de domínio mundial dos Estados Unidos, ao lado da incontornável ascensão da China Popular, acarretou adaptações e complementações a este sistema precário de manutenção da paz. Depois de 1991 pode-se dizer que, desde então, temos um “sistema”, que bem ou mal – e em casos como o Afeganistão, Síria, Líbia, Somália entre outros foi bastante mal – funciona ao evitar um choque entre grandes potências. Guerras híbridas ou por procuração substituíram a possibilidade de choque direto. O sistema, com tais ressalvas, mantém-se em funcionamento. Ao menos se temos em vista que o objetivo maior é evitar uma guerra nuclear global.

Num mundo armado com cerca de 8.500 ogivas nucleares russas, 7.700 norte-americanas, enquanto a China Popular possui entre 270 e 432 ogivas nucleares, outras 298 ogivas francesas, mais 225 britânicas, as possíveis 75 ogivas israelenses (alguns falam em até 400), juntando-se as 90 até 110 indianas e as 110-120 ogivas paquistanesas – sem falar no mistério e blefe constantes da Coreia do Norte, com possíveis 20 armas (mas, sem um sistema de vetores que seja seguro para atingir alvos determinados) – temos que admitir que o sistema de “paz armada”, com os corolários de dissuasão mútua e risco de destruição mútua assegurada foram elementos – não os ideais, é claro – eficazes de garantia de paz.

Este sistema mundial, depois de 1991, equilibrou-se sobre alguns elementos-chave, que foram respeitados, até o momento, por todas as nações relevantes (no sistema de poder mundial) e para a manutenção da paz e na dissuasão de uma hecatombe nuclear global. Assim, são pilares que sustentam precariamente o atual equilíbrio mundial:

A política, estabelecida desde Henry Kissinger, durante a Administração de Richard Nixon (1969-1974), de “uma só Nação chinesa e dois Estados”, com o acordo que a busca por parte de Beijing da unificação nacional é justa e deve ser feita através de meios pacíficos. Tal política permitiu o acesso de Beijing ao Conselho de Segurança da ONU e a abertura comercial da China, que a tornou um dos pilares do equilíbrio e da prosperidade mundial;

A plena confiança dos países da Europa Ocidental, e depois de 1991 dos ex-membros do Pacto de Varsóvia, então dirigido por Moscou, na validade do Artigo 5 da OTAN, pelo qual os Estados Unidos seriam garantes da integridade dos países europeus em caso de uma “agressão russa”;

Pacto de Segurança e Assistência Mútua entre o Japão e os Estados Unidos, assinado em 1951, em plena recuperação industrial e tecnológica nipônica, que estendeu o “Guarda-Chuva Nuclear” americano sobre as ilhas nipônicas e, por esta via, assegurou que Tóquio não desenvolve um arsenal nuclear próprio, capaz de desafiar e subverter o equilíbrio militar na Ásia-Pacífico;

A extensão do Tratado de Não Proliferação Nuclear, TNP, ao conjunto dos países, impedindo não só a proliferação nuclear em escala mundial, mas ainda, evitando que armas de destruição em massa passassem para mãos de estados “irresponsáveis” ou mesmo, como em tantos roteiros hollywoodianos, caíssem em mãos de organizações terroristas. Nem sempre aceito, como nos casos que veremos abaixo, mas suficientemente forte para impedir que países como a Alemanha e Japão, como também Brasil, Argentina, África do Sul, Turquia – todos com capacidade nuclear – desenvolvessem arsenais nucleares, tornando o mundo ainda mais complicado – e, claro, garantindo a tutela das potências atômicas;

O apadrinhamento pelos Estados Unidos (e agora pela China Popular) de um Paquistão nuclear – um dos “furos” do TNP – assegurando através de ajuda e cooperação econômica que o país não seja ameaçado em sua existência pela Índia; da mesma forma, o apadrinhamento desta pela então URSS, e hoje pelos mesmos Estados Unidos, e aceitando sua transformação em uma potência nuclear relevante, mas cooperando e ajudando Délhi e Islamabad a evitarem um conflito nuclear que, imediatamente, transformar-se-ia no maior desastre humanitário da história. Assim, um equilíbrio entre Índia e Paquistão tornar-se-ia um dos pilares do sistema mundial de poder;

A garantia da segurança do Estado de Israel, através de programas constantes de ajuda militar e de cooperação estratégica (e uso do veto no Conselho de Segurança da ONU), embora ressaltando a necessidade de Jerusalém manter-se como uma cidade dividida, com sua porção palestina, e a criação de um (mini) Estado Palestino minimamente viável (contra a colonização de territórios palestinos), sem ser, contudo, uma ameaça futura a Israel.

Vemos, assim, que tais “pilares” são estratégicos e, ao mesmo tempo, bastante instáveis. Qualquer alteração não negociada ou a ascensão de novas potências, mesmo regionais, não comprometidas com tal agenda, como no caso do Irã e da Coreia do Norte (e muito provavelmente no caso do Brasil e da Turquia, alvos de “desconstrução” interna visando manter ambos abaixo da linha da relevância no cenário mundial) seria um passo para a crise do sistema global.

A eleição de Donald Trump, um notável outsider, desconhecedor do ambiente acadêmico de relações internacionais, de história e ciência política, além de totalmente estranho ao mundo da “finesse” diplomática – mas atento às bravatas de militares afastados pelas administrações Clinton e Obama e/ou desmoralizados pelas derrotas da administração Bush (júnior) – emerge como um período de turbulência e de possíveis crises do sistema mundial de equilíbrio de poder.

É bem verdade que o sistema mundial já estava em crise à revelia das idiossincrasias de Trump. O “excedente de poder” nas mãos de Washington, aliado e decorrente da derrota da URSS na Guerra Fria, permitiu uma busca pouco racional, por parte de Washington, de uma improvável hegemonia mundial. Assim, a multiplicação de guerras localizadas (Afeganistão, Iraque, Síria, Somália, Iêmen, entre outras) permitiu e fomentou um terrível radicalismo dito “jihadista”, com resultados dramáticos nos diversos atentados terroristas. Algumas nações, como a Coreia do Norte e Irã, sentiram-se na obrigação de buscar armas de destruição em massa como “equalizadores de poder” frente à ameaça estadunidense; enquanto isso, outros, como a nova Federação Russa ou a China Popular, se viram “cercados” pelos Estados Unidos e a seu braço armado, a OTAN. Assim, a algidez dos conflitos atuais – Ucrânia, Síria, Coreia do Norte e a tensão crescente no Mar do Sul da China – é o exato resultado da busca de Washington por manter sua supremacia mundial – ameaçada pela emergência de novas potências, pela continuidade da crise econômica mundial e pelo envelhecimento do parque industrial americano.

O Programa de Trump, America First, é o remédio geral, ou talvez um placebo, para todos estes desafios. No entanto, ao buscar e confundir estratégia e tática – como na tentativa de chantagear Beijing no plano comercial com a ameaça de reconhecer Taiwan como um país de pleno direito, a ameaça de romper os acordos com o Irã, de mudar a embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém e, por fim, desdenhar do Artigo 5 do Pacto do Atlântico – plantou a semente da confusão e da balbúrdia no sistema mundial.

Claro, é sabido como é firme e conservador o establishment político de Washington e os lobbies militares, energéticos e de serviços dos Estados Unidos. Seriam capazes de “domesticar” Trump? Este é um grande desafio para o sistema de poder e a forma de governo dos Estados Unidos. Qual o alcance de tal desafio só saberemos nos cem dias depois de 20 de janeiro de 2017.



* É professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército do Brasil (ECEME).

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