Ambrose Bierce (1842-1914?) nasceu em Ohio, Estados Unidos, e morreu em
lugar incerto e não sabido, provavelmente no México, entre os rebelados
de Pancho Villa. Jornalista dos mais ácidos, é autor de vários contos
fantásticos. Sua obra ficcional faz dele um dos mestres da literatura de
horror tipicamente americana, junto com Edgar Allan POe e H.P.
Lovecraft. Sua obra geral, e O Dicionário do Diabo em particular,
colocam-no ao lado de Hawthorne, Melville, Mark Twain e novamente e sua
visão amarga e cética em relação ao mundo.
Veja em:http://www.citador.pt/frases/citacoes/a/ambrose-gwinett-bierce
Veja em: http://heloisaseixas.com.br/textos-diversos/personagem-de-si-mesmo-o-misterio-de-ambrose-bierce/
Ele era louro, alto, bonitão e as mulheres consideravam-no irresistível. Dizem até que tinha sido tão bem-dotado pela natureza que jamais se desnudava diante de uma mulher para não assustá-la. Era agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descrêem de tudo. Sarcástico ao extremo, dedicou boa parte da vida a cultivar inimizades graças a sua atividade de jornalista, profissão que exercia despejando veneno a granel. Era um crítico feroz, inteligente e incansável — e por isso intensamente odiado por muitos. “Minha independência é meu patrimônio. É minha literatura”, dizia. “Escrevo para agradar a mim mesmo, não importando quem saia ferido”.
Quem diria que uma pessoa assim — descrente, mordaz e extremamente envolvida pelos prazeres da carne — fosse dedicar-se a escrever histórias assombradas? Pois foi o que aconteceu. Embora tenha ficado famoso por seus textos jornalísticos e pelo humor sardônico presente em obras como o Dicionário do diabo, Ambrose Bierce é hoje considerado um dos mestres da literatura de horror americana, junto com H. P. Lovecraft e, é claro, Edgar Allan Poe.
Mas a verdade é que Ambrose Gwinett Bierce já nasceu cercado pelo mistério. E pelo humor negro. Sua família era um tanto excêntrica e a casa onde veio ao mundo — em Ohio, Estados Unidos, em 24 de julho de 18421 — tinha, dizem, uma atmosfera macabra. Seu pai, Marcus Aurelius Bierce, já era um sujeito estranho. Dominado pela mulher, fanático religioso e apaixonado por poesia, deu a todos os 13 filhos (Bierce era o décimo) nomes que começassem com a letra ‘A’. No caso de Bierce, o nome do meio, Gwinett, teria sido acrescentado em referência a Ambrose Gwinett, personagem de uma peça de teatro muito popular no início do século XIX e que era uma história de crime (tendo seu nome ligado a uma história assim, não seria esse o crime ancestral de que — como veremos adiante — nos fala Bierce em seus pesadelos?).
Mas as excentricidades da família de Bierce não param por aí. Os três irmãos que nasceram depois de Bierce morreram e ele ficou sendo o caçula. Quando cresceram, seus nove irmãos mais velho se dividiram em grupos antagônicos, que se odiavam, e o ambiente em casa era de guerra aberta e permanente. A certa altura, um dos irmãos se rebelou contra o fanatismo religioso da família e fugiu para ser artista de circo. Uma das irmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismo que foi ser missionária na África, onde teria sido comida por canibais.
Por pouco não aconteceu o mesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus, que foi em expedição ao Canadá para libertar os índios do jugo britânico e, depois de tomar a cidade de Windsor, viu acontecer o que menos esperava: os índios se voltaram contra ele e Lucius Verus precisou sair corrido de lá. Esse tio aventureiro, apesar de meio doido, foi uma das figuras que mais influenciaram Bierce em sua infância e juventude. Lucius Verus percebeu que o jovem Abrose, além de bonito e charmoso, com seus olhos azuis e o cabelo louro-avermelhado, era também dono de uma inteligência excepcional. Por isso, desde muito cedo tomou conta do rapaz, dando-lhe conselhos e livros.
Quando ele tinha 15 anos, Lucius Verus, talvez prevendo a eclosão de uma guerra nos Estados Unidos, mandou-o para o Instituto Militar de Kentucky. Lá, Bierce mostrou grande interesse pelo treinamento militar, mas descobriu também seu talento como cartunista. E o fato é que, ao deixar Kentucky, em vez de voltar para a casa dos pais, foi trabalhar no jornal de uma cidadezinha de Indiana. Em 1861, quando tinha 18 anos, Bierce atendeu ao primeiro chamado do Presidente Abraham Lincoln e alistou-se no Nono Regimento de Indiana. Logo estouraria a Guerra Civil. Foi quando ele teve a chance de se transformar num herói — e o fez.
Sua passagem pela vida militar foi algo sensacional. Corajoso, os perigos das batalhas nada significavam para ele. E, como tomava decisões rápidas, com seriedade e consciência, destacava-se dos demais soldados, inseguros e indecisos. Durante uma batalha na Virgínia, salvou um companheiro ferido em meio ao fogo cruzado, o que lhe valeu, apenas três meses depois de alistar-se como voluntário, a patente de sargento.
Seguiram-se três anos de batalha, durante os quais Bierce se destacou de várias maneiras, até chamar a atenção do general William Hazen, que se transformaria numa figura-chave em sua vida. Hazen, percebendo o valor de Bierce (que então já era segundo-tenente), promoveu-o a primeiro-tenente e nomeou-o para uma das missões mais perigosas da guerra: fazer reconhecimento de campo antes das batalhas. Bierce ainda não completara 21 anos.
A nova função agradou ao rapaz por várias razões: primeiro, era um trabalho solitário. Segundo, incluía a feitura de mapas e a redação de relatórios, tudo com rapidez e exatidão, já que eram vidas que estavam em jogo. E foi assim que Bierce trabalhou em perigosas missões de reconhecimento nas campanhas do Tennessee, de Chattanooga e de Atlanta, até o dia 23 de junho de 1864 (ia fazer 22 anos dali a um mês) quando, na batalha da montanha de Kenesaw, recebeu uma bala na cabeça. ”A bala rachou meu crânio como se fosse uma casca de noz”, diria ele mais tarde, com seu habitual humor.
Por sorte, Bierce foi resgatado com vida e conseguiu sobreviver ao ferimento. Convalescente, foi mandado para junto dos pais. Mas, assim que se recuperou — depois de meses tendo “brancos” e sentindo tonteiras –, voltou à ativa, servindo na Geórgia até que a guerra terminou, em abril de 1865. E dessa vez não voltou para casa. Seus pais nunca mais tornariam a vê-lo.
Depois de trabalhar durante um ano na reconstrução do Sul, foi novamente chamado pelo general Hazen que, em tempos de paz, tinha sido incumbido de explorar e mapear o Oeste e o queria como seu assistente técnico. Feliz da vida, Bierce aceitou. E, assim, embrenharam-se pelo Velho Oeste, atravessando o território dos índios Sioux.
Na mesma época, o general Hazen fez uma recomendação formal para que Bierte, até então apenas um oficial voluntário, fosse aceito como oficial do Exército Regular americano. Mas, depois de muitas aventuras, quando finalmente chegaram a São Francisco, no fim de 1866, descobriram que Bierce havia sido aceito no Exército Regular, só que com a patente reduzida para segundo-tenente. E sem perspectiva de uma promoção tão cedo. Embora adorasse o trabalho, era uma situação humilhante. Bierce fez cara ou coroa para decidir se aceitaria ou não. Jogou a moeda para cima para ver se ficaria com a patente inferior ou se iria para a vida civil, a fim de exercer a única profissão sobre a qual tinha um mínimo de conhecimento — o jornalismo. A moeda decidiu jornalismo e Bierce aceitou o veredicto.
Quarenta anos depois, ele diria: “A moeda estava certa”.
“Escrevo para as almas iluminadas que preferem os vinhos secos aos doces, a razão aos sentimentos, a sagacidade ao humor e o inglês puro às gírias”. Essa é uma frase típica do jornalista Bierce, que começou trabalhando para um semanário, o San Francisco News Letter and Commercial Advertiser. Em pouco tempo, tornou-se editor e titular de uma coluna, na qual, desde o início, já exercitava o sarcasmo e a crítica, que seriam suas marcas.
Com os donos de jornais a favor da teoria de que violência aumentava as vendas, muitos articulistas atrevidos eram perseguidos e espancados pelo que escreviam, sendo às vezes obrigados a deixar a cidade. Bierce, nesse início de carreira, escrevia com veneno e brutalidade raramente superados na história do jornalismo americano (embora muito imitados). Havia quem apostasse sobre sua longevidade. Mas, de novo, ele sobreviveu.
Independente e dizendo o que queria, mantinha com o dono do jornal, Fred Marriott, uma relação de respeito mútuo e este último jamais lhe dava ordens, apenas sugestões. A parceria deu certo, o jornal vendeu mais e Bierce começou a ganhar dinheiro — a ponto de reunir as condições para se casar. Em 1871, casou-se com Molly Day, uma jovem da sociedade de São Francisco, cujo pai, rico, financiou a ida do jovem casal para Londres, onde passariam uma longa temporada. A intenção de Bierce era ser escritor, mas as dificuldades eram muitas e, em 1873, ele acabou voltando para São Francisco, trazendo na bagagem muita experiência e uma forte reputação, mas sem emprego à vista.
Nos anos que se seguiram, chegou a pensar em largar o jornalismo e trabalhou como gerente de uma mina de ouro, aderindo à febre da busca à fortuna fácil, mas sua participação na Corrida do Ouro deu em nada e, depois disso, nunca mais ousou desobedecer à moeda de seu destino. Acabou tornando-se editor-chefe da Wasp, uma revista de política de humor, onde ficou de 1881 a 1886, desenhando charges políticas, escrevendo editoriais arrasadores e atirando, em todas as direções, seu sarcasmo impiedoso. Foi um período produtivo e brilhante, mas, em sua vida particular, as coisas não andavam muita boas. Já era, então, pai de três filhos, dois meninos e uma menina, mas estava mal de finanças (seu sogro tinha falido), bebia muito e brigava cada vez mais com a mulher, de quem acabaria se separando.
Foi por essa época, já com mais de 40 anos, que Bierce começou a escrever ficção. Escreveu principalmente contos — de horror, de humor, de guerra –, reiterando na prática aquilo que afirmava em suas críticas literárias: que um romance é apenas uma maneira mais fácil de escrever um conto. Mantendo uma pitada de deboche mesmo nas histórias mais aterrorizantes (quase podemos ouvir sua risada por trás das frases), escreveu também poemas e fábulas, tendo começado, em 1881, a preparar o Dicionário do diabo, em que demolia conceitos, de A a Z, com sua visão cínica e debochada do mundo.
Um dia, em 1887, como ele contaria depois, um jovem bateu à sua porta: era William Randolph Hearst, na época com 24 anos, que acabara de receber das mãos do pai o jornal Examiner e vinha convidar Bierce para trabalhar com ele. Era o início de uma parceria que duraria vinte anos e marcaria de forma definitiva a história do jornalismo americano — Hearst, como se sabe, seria o modelo usado por Orson Welles em seu filme Cidadão Kane.
Durante aquelas duas décadas, Bierce e Hearst chegaram a se odiar, mas de alguma forma continuaram trabalhando juntos, pois a virulência do primeiro servia aos interesses do segundo. Bierce não poupava ninguém: políticos, prostitutas, feministas, escritores que considerava medíocres, fazendeiros, sindicalistas, jornalistas opositores e amigos com quem tivesse brigado. Quando deixou São Francisco e foi trabalhar em Washington, houve quem dissesse que se mudara para fugir dos inimigos.
Apesar do olhar intenso, Bierce era um homem de fala mansa, que se tornava cada vez mais suave à medida que ia ficando furioso. Aqueles que o conheciam apenas pelo que liam no jornal ficavam muitas vezes surpresos com suas maneiras gentis e chegavam a encantar-se com ele, embora, é claro, passassem a odiá-lo assim que o contato pessoal se aprofundava um pouco.
Três homens que conviveram com Bierce e escreveram perfis dele — Adolphe de Castro, George Sterling e Walter Neale — traçaram retratos tão diversos que é difícil acreditar que estivessem falando do mesmo homem.
Bierce era um solitário. Capaz de chutar um cachorro que aparecesse na sua frente — porque odiava seus latidos, seu cheiro e sua vulgaridade –, podia por outro lado comover-se com pequenas criaturas indefesas, acolhendo filhotes de pássaros que não conseguissem voar e até ratinhos doentes.
No jornal, mantinha sobre sua escrivaninha um crânio humano e uma caixa de charutos. Quando perguntado sobre aqueles objetos, dizia que o crânio era o que restara de um velho amigo, enquanto a caixa guardava as cinzas de um crítico rival. E falava isso sem rir.
Era conhecido em São Francisco como “the bitter Bierce” (o amargo Bierce) e entre seus desafetos — para citar apenas os da área literária — estavam figuras como Henry James e Jack London.
Mesmo na vida pessoal, era capaz das piores vilanias quando queria atingir seus objetivos, embora fosse corretíssimo em questões financeiras. Conta-se que, ao saber que seu filho mais novo pretendia casar-se com uma moça que desaprovava, Bierce teria acabado com os planos do rapaz inventando que a moça era sua irmã ilegítima.
Com tudo isso, evidente que era cada vez mais odiado. E começou a receber o troco. Houve quem o acusasse de ter sido o principal culpado pelas tragédias que abateram sua família. E não foram poucas. Seu filho mais velho morreu assassinado. Alguns anos depois, o mais jovem morreu de alcoolismo. A mulher o largou e, por causa da separação, Bierce nunca mais viu a filha. Albert, único irmão com quem continuava se relacionando, morreu pouco depois de receber uma carta em que Bierce o desancava, provocando comentários de que as palavras rudes o tinham matado de desgosto.
Bierce era cruel até consigo mesmo. Sofria de asma e mergulhava cada vez mais fundo no alcoolismo, tendo sofrido pelo menos um ataque de delirium tremens. Já não escrevia ficção (seus últimos contos datam de 1896) e fechava-se cada vez mais em si mesmo, com seu temperamento irascível tornando-se intolerável até para os amigos mais chegados e mais pacientes. Até que, no verão de 1913, aos 71 anos, velho, amargo e doente, mas ainda uma lenda viva, Ambrose Gwinnett Bierce armou a cena final em que escaparia da civilização que tanto detratara. E, em algum lugar do México — ninguém sabe exatamente onde, nem quando, nem como –, viu-se frente a frente com a personagem que era uma de suas obsessões: a morte.
Em muitas de suas histórias, Bierce já parecia farejar essa morte. Em seus contos de horror, ele tem alguns temas recorrentes: um homem caminha sozinho, geralmente à noite, num descampado ou numa floresta, sem saber bem se está desperto ou se é tudo um sonho. Sente uma certa inquietação, talvez a consciência de um crime cometido, embora desconheça os detalhes de suas tragédia. Em muitos de seus contos, alguém desaparece sem deixar traço — ou, o que talvez seja ainda mais horripilante, deixando para trás indícios de sua presença assombrada.
Bierce parecia fixar-se em alguns assuntos, escrevendo por vezes histórias parecidas sobre um mesmo tema, donde a ideia de juntar, nesta antologia, vários contos semelhantes sob um mesmo título, como acontece em “Aparições”, “Casas espectrais” e “Cruzando o umbral”. Mas é nos casos de desaparecimentos que ele se fixou mais. Sua obsessão sobre o assunto chegou a tal ponto que, nos últimos anos de vida, colecionava relatos de sumiços misteriosos.
Costumava também abrir seus contos com epígrafes contendo reflexões sobre a morte. Numa delas, abre o conto “Um habitante de Carcosa” (incluído em “Cruzando o umbral”), Bierce escolheu como epígrafe um texto que diz o seguinte: Pois há diversos tipos de morte. Em algumas (…) o corpo desaparece junto com o espírito. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo está só (…) e, como não nos é dado conhecer o fim, dizemos que o homem desapareceu, ou que se foi numa longa jornada — o que é verdade.
Ao escrever essas linhas, estaria Bierce, conscientemente, preparando o caminho daquilo que ele próprio um dia, talvez de forma deliberada, iria fazer? Seria uma premonição, ou uma fantástica coincidência, essa sua obsessão pelos desaparecimentos? Ou apenas sua última — e mais terrível — piada de humor negro?
Ninguém jamais pôde responder a essas perguntas.
As especulações foram muitas, mas nunca se soube ao certo o que aconteceu com Ambrose Bierce. Sabe-se apenas que um dia ele anunciou que iria para o México de Pancho Villa, mergulhado numa sangrenta guerra civil. Aos amigos, pessoalmente ou por carta, fez referências vagas sobre quais seriam suas intenções, comentando, com seu habitual deboche, que “o paredão era uma boa maneira de partir desta vida” e que, pisar em solo mexicano naqueles tempos, era “uma espécie de eutanásia”. E desapareceu.
Alguns disseram que Bierce, mal de saúde, tendo recebido a notícia de que lhe restava pouco tempo de vida, suicidara-se. Houve quem garantisse mesmo que ele se teria atirado do Grand Canyon. Outra história surgida, ainda mais engenhosa, assegurava que Bierce havia escapado para a Inglaterra, onde se tornara assessor de um certo Lorde Kitchener, morrendo lá em segredo anos depois. Outros afirmavam que ele fora de fato para o México, onde desafiara a morte, nas batalhas.
A versão que parece mais razoável é a de que Bierce queria cobrir a revolução de Pancho Villa como correspondente de guerra e realmente foi para lá, onde morreu — de morte natural, acidentalmente (numa batalha) ou talvez executado por insultar Villa. Seja como for, fica-nos a sensação de que Bierce — ele, que tinha nos sonhos outra de suas obsessões — rompeu as fronteiras entre realidade e fantasia, subvertendo a ordem do universo, esse universo que sua alma rebelde rejeitava e desprezava.
O mundo onírico é, aliás, o tema do texto que deu origem ao título desta antologia, “Visões da noite”, no qual Bierce conta três de seus pesadelos recorrentes, além de analisar a própria matéria de que são feitos os sonhos. Neles, lá está o mesmo homem que caminha solitário, como em seus contos de terror, o mesmo homem que, na vida real, escrevia histórias nas quais o aparato gótico parecia ser apenas um símbolo da decadência humana. Sim, porque, para Bierce, a fonte principal do horror é sem dúvida a mente do homem.
Sua descrença da humanidade — presente em tudo o que fez — se reflete na imponderabilidade de muitas de suas histórias, assim como no alto teor de ironia que pressentimos nas entrelinhas. Essa ironia chega às vezes a interferir no próprio clima de terror que Bierce, como autor, está tentando criar no leitor. Numa espécie de auto-sabotagem literária, ele interrompe uma narrativa arrepiante para fazer uma brincadeira. E é como se, com uma expressão diabólica, nos dissesse, a nós, leitores: “Vamos ver se, mesmo depois dessa piada, você continua acreditando”.
Temos por vezes a sensação de que Bierce brinca de gato e rato conosco, lançando pistas falsas, dando-nos excessivos detalhes — de nomes, acontecimentos e situações geográficas — que depois não terão muita importância na história, apenas para testar nossa paciência, ou, quem sabe, para nos deixar na boca, terminada a leitura, um travo de inquietação.
Esse jogo de pistas falsas talvez explique por que Bierce nem sempre é incluído pelos críticos entre os maiores autores americanos de todos os tempos — embora muitos reconheçam que ele é um dos mais originais e ousados, pertencendo àquela (rara) classe de escritores pelos quais nunca passamos impunemente.
Bierce podia ser cínico, idealista, amargo, frustrado, genial, sádico, pervertido, brilhante, brutal, satirista, poeta, misantropo e até mesmo charlatão — foi chamado de tudo isto. Mas foi um homem e escritor fascinante, que um dia cruzou a fronteira do Desconhecido e — talvez com uma terrível gargalhada final — tornou-se personagem de si mesmo, saindo da vida para entrar em suas próprias histórias.
Veja em:http://www.citador.pt/frases/citacoes/a/ambrose-gwinett-bierce
Veja em: http://heloisaseixas.com.br/textos-diversos/personagem-de-si-mesmo-o-misterio-de-ambrose-bierce/
Ele era louro, alto, bonitão e as mulheres consideravam-no irresistível. Dizem até que tinha sido tão bem-dotado pela natureza que jamais se desnudava diante de uma mulher para não assustá-la. Era agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descrêem de tudo. Sarcástico ao extremo, dedicou boa parte da vida a cultivar inimizades graças a sua atividade de jornalista, profissão que exercia despejando veneno a granel. Era um crítico feroz, inteligente e incansável — e por isso intensamente odiado por muitos. “Minha independência é meu patrimônio. É minha literatura”, dizia. “Escrevo para agradar a mim mesmo, não importando quem saia ferido”.
Quem diria que uma pessoa assim — descrente, mordaz e extremamente envolvida pelos prazeres da carne — fosse dedicar-se a escrever histórias assombradas? Pois foi o que aconteceu. Embora tenha ficado famoso por seus textos jornalísticos e pelo humor sardônico presente em obras como o Dicionário do diabo, Ambrose Bierce é hoje considerado um dos mestres da literatura de horror americana, junto com H. P. Lovecraft e, é claro, Edgar Allan Poe.
Mas a verdade é que Ambrose Gwinett Bierce já nasceu cercado pelo mistério. E pelo humor negro. Sua família era um tanto excêntrica e a casa onde veio ao mundo — em Ohio, Estados Unidos, em 24 de julho de 18421 — tinha, dizem, uma atmosfera macabra. Seu pai, Marcus Aurelius Bierce, já era um sujeito estranho. Dominado pela mulher, fanático religioso e apaixonado por poesia, deu a todos os 13 filhos (Bierce era o décimo) nomes que começassem com a letra ‘A’. No caso de Bierce, o nome do meio, Gwinett, teria sido acrescentado em referência a Ambrose Gwinett, personagem de uma peça de teatro muito popular no início do século XIX e que era uma história de crime (tendo seu nome ligado a uma história assim, não seria esse o crime ancestral de que — como veremos adiante — nos fala Bierce em seus pesadelos?).
Mas as excentricidades da família de Bierce não param por aí. Os três irmãos que nasceram depois de Bierce morreram e ele ficou sendo o caçula. Quando cresceram, seus nove irmãos mais velho se dividiram em grupos antagônicos, que se odiavam, e o ambiente em casa era de guerra aberta e permanente. A certa altura, um dos irmãos se rebelou contra o fanatismo religioso da família e fugiu para ser artista de circo. Uma das irmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismo que foi ser missionária na África, onde teria sido comida por canibais.
Por pouco não aconteceu o mesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus, que foi em expedição ao Canadá para libertar os índios do jugo britânico e, depois de tomar a cidade de Windsor, viu acontecer o que menos esperava: os índios se voltaram contra ele e Lucius Verus precisou sair corrido de lá. Esse tio aventureiro, apesar de meio doido, foi uma das figuras que mais influenciaram Bierce em sua infância e juventude. Lucius Verus percebeu que o jovem Abrose, além de bonito e charmoso, com seus olhos azuis e o cabelo louro-avermelhado, era também dono de uma inteligência excepcional. Por isso, desde muito cedo tomou conta do rapaz, dando-lhe conselhos e livros.
Quando ele tinha 15 anos, Lucius Verus, talvez prevendo a eclosão de uma guerra nos Estados Unidos, mandou-o para o Instituto Militar de Kentucky. Lá, Bierce mostrou grande interesse pelo treinamento militar, mas descobriu também seu talento como cartunista. E o fato é que, ao deixar Kentucky, em vez de voltar para a casa dos pais, foi trabalhar no jornal de uma cidadezinha de Indiana. Em 1861, quando tinha 18 anos, Bierce atendeu ao primeiro chamado do Presidente Abraham Lincoln e alistou-se no Nono Regimento de Indiana. Logo estouraria a Guerra Civil. Foi quando ele teve a chance de se transformar num herói — e o fez.
Sua passagem pela vida militar foi algo sensacional. Corajoso, os perigos das batalhas nada significavam para ele. E, como tomava decisões rápidas, com seriedade e consciência, destacava-se dos demais soldados, inseguros e indecisos. Durante uma batalha na Virgínia, salvou um companheiro ferido em meio ao fogo cruzado, o que lhe valeu, apenas três meses depois de alistar-se como voluntário, a patente de sargento.
Seguiram-se três anos de batalha, durante os quais Bierce se destacou de várias maneiras, até chamar a atenção do general William Hazen, que se transformaria numa figura-chave em sua vida. Hazen, percebendo o valor de Bierce (que então já era segundo-tenente), promoveu-o a primeiro-tenente e nomeou-o para uma das missões mais perigosas da guerra: fazer reconhecimento de campo antes das batalhas. Bierce ainda não completara 21 anos.
A nova função agradou ao rapaz por várias razões: primeiro, era um trabalho solitário. Segundo, incluía a feitura de mapas e a redação de relatórios, tudo com rapidez e exatidão, já que eram vidas que estavam em jogo. E foi assim que Bierce trabalhou em perigosas missões de reconhecimento nas campanhas do Tennessee, de Chattanooga e de Atlanta, até o dia 23 de junho de 1864 (ia fazer 22 anos dali a um mês) quando, na batalha da montanha de Kenesaw, recebeu uma bala na cabeça. ”A bala rachou meu crânio como se fosse uma casca de noz”, diria ele mais tarde, com seu habitual humor.
Por sorte, Bierce foi resgatado com vida e conseguiu sobreviver ao ferimento. Convalescente, foi mandado para junto dos pais. Mas, assim que se recuperou — depois de meses tendo “brancos” e sentindo tonteiras –, voltou à ativa, servindo na Geórgia até que a guerra terminou, em abril de 1865. E dessa vez não voltou para casa. Seus pais nunca mais tornariam a vê-lo.
Depois de trabalhar durante um ano na reconstrução do Sul, foi novamente chamado pelo general Hazen que, em tempos de paz, tinha sido incumbido de explorar e mapear o Oeste e o queria como seu assistente técnico. Feliz da vida, Bierce aceitou. E, assim, embrenharam-se pelo Velho Oeste, atravessando o território dos índios Sioux.
Na mesma época, o general Hazen fez uma recomendação formal para que Bierte, até então apenas um oficial voluntário, fosse aceito como oficial do Exército Regular americano. Mas, depois de muitas aventuras, quando finalmente chegaram a São Francisco, no fim de 1866, descobriram que Bierce havia sido aceito no Exército Regular, só que com a patente reduzida para segundo-tenente. E sem perspectiva de uma promoção tão cedo. Embora adorasse o trabalho, era uma situação humilhante. Bierce fez cara ou coroa para decidir se aceitaria ou não. Jogou a moeda para cima para ver se ficaria com a patente inferior ou se iria para a vida civil, a fim de exercer a única profissão sobre a qual tinha um mínimo de conhecimento — o jornalismo. A moeda decidiu jornalismo e Bierce aceitou o veredicto.
Quarenta anos depois, ele diria: “A moeda estava certa”.
“Escrevo para as almas iluminadas que preferem os vinhos secos aos doces, a razão aos sentimentos, a sagacidade ao humor e o inglês puro às gírias”. Essa é uma frase típica do jornalista Bierce, que começou trabalhando para um semanário, o San Francisco News Letter and Commercial Advertiser. Em pouco tempo, tornou-se editor e titular de uma coluna, na qual, desde o início, já exercitava o sarcasmo e a crítica, que seriam suas marcas.
Com os donos de jornais a favor da teoria de que violência aumentava as vendas, muitos articulistas atrevidos eram perseguidos e espancados pelo que escreviam, sendo às vezes obrigados a deixar a cidade. Bierce, nesse início de carreira, escrevia com veneno e brutalidade raramente superados na história do jornalismo americano (embora muito imitados). Havia quem apostasse sobre sua longevidade. Mas, de novo, ele sobreviveu.
Independente e dizendo o que queria, mantinha com o dono do jornal, Fred Marriott, uma relação de respeito mútuo e este último jamais lhe dava ordens, apenas sugestões. A parceria deu certo, o jornal vendeu mais e Bierce começou a ganhar dinheiro — a ponto de reunir as condições para se casar. Em 1871, casou-se com Molly Day, uma jovem da sociedade de São Francisco, cujo pai, rico, financiou a ida do jovem casal para Londres, onde passariam uma longa temporada. A intenção de Bierce era ser escritor, mas as dificuldades eram muitas e, em 1873, ele acabou voltando para São Francisco, trazendo na bagagem muita experiência e uma forte reputação, mas sem emprego à vista.
Nos anos que se seguiram, chegou a pensar em largar o jornalismo e trabalhou como gerente de uma mina de ouro, aderindo à febre da busca à fortuna fácil, mas sua participação na Corrida do Ouro deu em nada e, depois disso, nunca mais ousou desobedecer à moeda de seu destino. Acabou tornando-se editor-chefe da Wasp, uma revista de política de humor, onde ficou de 1881 a 1886, desenhando charges políticas, escrevendo editoriais arrasadores e atirando, em todas as direções, seu sarcasmo impiedoso. Foi um período produtivo e brilhante, mas, em sua vida particular, as coisas não andavam muita boas. Já era, então, pai de três filhos, dois meninos e uma menina, mas estava mal de finanças (seu sogro tinha falido), bebia muito e brigava cada vez mais com a mulher, de quem acabaria se separando.
Foi por essa época, já com mais de 40 anos, que Bierce começou a escrever ficção. Escreveu principalmente contos — de horror, de humor, de guerra –, reiterando na prática aquilo que afirmava em suas críticas literárias: que um romance é apenas uma maneira mais fácil de escrever um conto. Mantendo uma pitada de deboche mesmo nas histórias mais aterrorizantes (quase podemos ouvir sua risada por trás das frases), escreveu também poemas e fábulas, tendo começado, em 1881, a preparar o Dicionário do diabo, em que demolia conceitos, de A a Z, com sua visão cínica e debochada do mundo.
Um dia, em 1887, como ele contaria depois, um jovem bateu à sua porta: era William Randolph Hearst, na época com 24 anos, que acabara de receber das mãos do pai o jornal Examiner e vinha convidar Bierce para trabalhar com ele. Era o início de uma parceria que duraria vinte anos e marcaria de forma definitiva a história do jornalismo americano — Hearst, como se sabe, seria o modelo usado por Orson Welles em seu filme Cidadão Kane.
Durante aquelas duas décadas, Bierce e Hearst chegaram a se odiar, mas de alguma forma continuaram trabalhando juntos, pois a virulência do primeiro servia aos interesses do segundo. Bierce não poupava ninguém: políticos, prostitutas, feministas, escritores que considerava medíocres, fazendeiros, sindicalistas, jornalistas opositores e amigos com quem tivesse brigado. Quando deixou São Francisco e foi trabalhar em Washington, houve quem dissesse que se mudara para fugir dos inimigos.
Apesar do olhar intenso, Bierce era um homem de fala mansa, que se tornava cada vez mais suave à medida que ia ficando furioso. Aqueles que o conheciam apenas pelo que liam no jornal ficavam muitas vezes surpresos com suas maneiras gentis e chegavam a encantar-se com ele, embora, é claro, passassem a odiá-lo assim que o contato pessoal se aprofundava um pouco.
Três homens que conviveram com Bierce e escreveram perfis dele — Adolphe de Castro, George Sterling e Walter Neale — traçaram retratos tão diversos que é difícil acreditar que estivessem falando do mesmo homem.
Bierce era um solitário. Capaz de chutar um cachorro que aparecesse na sua frente — porque odiava seus latidos, seu cheiro e sua vulgaridade –, podia por outro lado comover-se com pequenas criaturas indefesas, acolhendo filhotes de pássaros que não conseguissem voar e até ratinhos doentes.
No jornal, mantinha sobre sua escrivaninha um crânio humano e uma caixa de charutos. Quando perguntado sobre aqueles objetos, dizia que o crânio era o que restara de um velho amigo, enquanto a caixa guardava as cinzas de um crítico rival. E falava isso sem rir.
Era conhecido em São Francisco como “the bitter Bierce” (o amargo Bierce) e entre seus desafetos — para citar apenas os da área literária — estavam figuras como Henry James e Jack London.
Mesmo na vida pessoal, era capaz das piores vilanias quando queria atingir seus objetivos, embora fosse corretíssimo em questões financeiras. Conta-se que, ao saber que seu filho mais novo pretendia casar-se com uma moça que desaprovava, Bierce teria acabado com os planos do rapaz inventando que a moça era sua irmã ilegítima.
Com tudo isso, evidente que era cada vez mais odiado. E começou a receber o troco. Houve quem o acusasse de ter sido o principal culpado pelas tragédias que abateram sua família. E não foram poucas. Seu filho mais velho morreu assassinado. Alguns anos depois, o mais jovem morreu de alcoolismo. A mulher o largou e, por causa da separação, Bierce nunca mais viu a filha. Albert, único irmão com quem continuava se relacionando, morreu pouco depois de receber uma carta em que Bierce o desancava, provocando comentários de que as palavras rudes o tinham matado de desgosto.
Bierce era cruel até consigo mesmo. Sofria de asma e mergulhava cada vez mais fundo no alcoolismo, tendo sofrido pelo menos um ataque de delirium tremens. Já não escrevia ficção (seus últimos contos datam de 1896) e fechava-se cada vez mais em si mesmo, com seu temperamento irascível tornando-se intolerável até para os amigos mais chegados e mais pacientes. Até que, no verão de 1913, aos 71 anos, velho, amargo e doente, mas ainda uma lenda viva, Ambrose Gwinnett Bierce armou a cena final em que escaparia da civilização que tanto detratara. E, em algum lugar do México — ninguém sabe exatamente onde, nem quando, nem como –, viu-se frente a frente com a personagem que era uma de suas obsessões: a morte.
Em muitas de suas histórias, Bierce já parecia farejar essa morte. Em seus contos de horror, ele tem alguns temas recorrentes: um homem caminha sozinho, geralmente à noite, num descampado ou numa floresta, sem saber bem se está desperto ou se é tudo um sonho. Sente uma certa inquietação, talvez a consciência de um crime cometido, embora desconheça os detalhes de suas tragédia. Em muitos de seus contos, alguém desaparece sem deixar traço — ou, o que talvez seja ainda mais horripilante, deixando para trás indícios de sua presença assombrada.
Bierce parecia fixar-se em alguns assuntos, escrevendo por vezes histórias parecidas sobre um mesmo tema, donde a ideia de juntar, nesta antologia, vários contos semelhantes sob um mesmo título, como acontece em “Aparições”, “Casas espectrais” e “Cruzando o umbral”. Mas é nos casos de desaparecimentos que ele se fixou mais. Sua obsessão sobre o assunto chegou a tal ponto que, nos últimos anos de vida, colecionava relatos de sumiços misteriosos.
Costumava também abrir seus contos com epígrafes contendo reflexões sobre a morte. Numa delas, abre o conto “Um habitante de Carcosa” (incluído em “Cruzando o umbral”), Bierce escolheu como epígrafe um texto que diz o seguinte: Pois há diversos tipos de morte. Em algumas (…) o corpo desaparece junto com o espírito. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo está só (…) e, como não nos é dado conhecer o fim, dizemos que o homem desapareceu, ou que se foi numa longa jornada — o que é verdade.
Ao escrever essas linhas, estaria Bierce, conscientemente, preparando o caminho daquilo que ele próprio um dia, talvez de forma deliberada, iria fazer? Seria uma premonição, ou uma fantástica coincidência, essa sua obsessão pelos desaparecimentos? Ou apenas sua última — e mais terrível — piada de humor negro?
Ninguém jamais pôde responder a essas perguntas.
As especulações foram muitas, mas nunca se soube ao certo o que aconteceu com Ambrose Bierce. Sabe-se apenas que um dia ele anunciou que iria para o México de Pancho Villa, mergulhado numa sangrenta guerra civil. Aos amigos, pessoalmente ou por carta, fez referências vagas sobre quais seriam suas intenções, comentando, com seu habitual deboche, que “o paredão era uma boa maneira de partir desta vida” e que, pisar em solo mexicano naqueles tempos, era “uma espécie de eutanásia”. E desapareceu.
Alguns disseram que Bierce, mal de saúde, tendo recebido a notícia de que lhe restava pouco tempo de vida, suicidara-se. Houve quem garantisse mesmo que ele se teria atirado do Grand Canyon. Outra história surgida, ainda mais engenhosa, assegurava que Bierce havia escapado para a Inglaterra, onde se tornara assessor de um certo Lorde Kitchener, morrendo lá em segredo anos depois. Outros afirmavam que ele fora de fato para o México, onde desafiara a morte, nas batalhas.
A versão que parece mais razoável é a de que Bierce queria cobrir a revolução de Pancho Villa como correspondente de guerra e realmente foi para lá, onde morreu — de morte natural, acidentalmente (numa batalha) ou talvez executado por insultar Villa. Seja como for, fica-nos a sensação de que Bierce — ele, que tinha nos sonhos outra de suas obsessões — rompeu as fronteiras entre realidade e fantasia, subvertendo a ordem do universo, esse universo que sua alma rebelde rejeitava e desprezava.
O mundo onírico é, aliás, o tema do texto que deu origem ao título desta antologia, “Visões da noite”, no qual Bierce conta três de seus pesadelos recorrentes, além de analisar a própria matéria de que são feitos os sonhos. Neles, lá está o mesmo homem que caminha solitário, como em seus contos de terror, o mesmo homem que, na vida real, escrevia histórias nas quais o aparato gótico parecia ser apenas um símbolo da decadência humana. Sim, porque, para Bierce, a fonte principal do horror é sem dúvida a mente do homem.
Sua descrença da humanidade — presente em tudo o que fez — se reflete na imponderabilidade de muitas de suas histórias, assim como no alto teor de ironia que pressentimos nas entrelinhas. Essa ironia chega às vezes a interferir no próprio clima de terror que Bierce, como autor, está tentando criar no leitor. Numa espécie de auto-sabotagem literária, ele interrompe uma narrativa arrepiante para fazer uma brincadeira. E é como se, com uma expressão diabólica, nos dissesse, a nós, leitores: “Vamos ver se, mesmo depois dessa piada, você continua acreditando”.
Temos por vezes a sensação de que Bierce brinca de gato e rato conosco, lançando pistas falsas, dando-nos excessivos detalhes — de nomes, acontecimentos e situações geográficas — que depois não terão muita importância na história, apenas para testar nossa paciência, ou, quem sabe, para nos deixar na boca, terminada a leitura, um travo de inquietação.
Esse jogo de pistas falsas talvez explique por que Bierce nem sempre é incluído pelos críticos entre os maiores autores americanos de todos os tempos — embora muitos reconheçam que ele é um dos mais originais e ousados, pertencendo àquela (rara) classe de escritores pelos quais nunca passamos impunemente.
Bierce podia ser cínico, idealista, amargo, frustrado, genial, sádico, pervertido, brilhante, brutal, satirista, poeta, misantropo e até mesmo charlatão — foi chamado de tudo isto. Mas foi um homem e escritor fascinante, que um dia cruzou a fronteira do Desconhecido e — talvez com uma terrível gargalhada final — tornou-se personagem de si mesmo, saindo da vida para entrar em suas próprias histórias.
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