Desde a mais recuada noite dos tempos, diante dos enigmas da existência e os desafios impostos pelas circunstâncias da vida, a humanidade exercita sua capacidade de reflexão e de compreensão. As concepções religiosas, filosóficas e científicas foram e são até hoje produto desse exercício: compreender a nós mesmos e a nossas circunstâncias sempre cambiantes, decifrar e explicar os mistérios da vida e do universo, ampliando incessantemente os horizontes do saber e da ignorância. Nessa aventura humana, de compreender e explicar, as concepções religiosas ganharam, desde cedo, e não as perderam até os dias de hoje, sólidas raízes e grande abrangência. Por sua capacidade de enlaçar a parte ao todo, oferecendo ordem ao que aparece como desordem, por sua coerência interna, aceitas suas premissas, e sobretudo pela ousadia de propor um sentido para a vida, para toda a vida e para todas as vidas, as religiões arrebataram as imaginações e ainda ofereceram segurança, conforto, consolo, porque seu escopo não se limitava aos territórios sensíveis, conhecidos e cognoscíveis enquanto durasse a vida, mas alcançava também os "undiscovered countries". Assim, foi certamente um equívoco imaginá-las como "ópio" dos povos, no sentido de "adormecer" ou "alienar", embora possam servir como propostas de resignação. De modo geral, ao contrário, têm animado e animam o pensar e o agir humanos. Basta observar a história da humanidade para constatar como as religiões impulsionaram e continuam a impulsionar proezas de toda sorte, sem falar nos sacrifícios consentidos, não raro, com leveza d'alma. Os tempos modernos pretenderam efetuar uma ruptura com essas tradições. Apoiando-se muitas vezes em fórmulas pretéritas, submeteram à crítica as explicações, o conhecimento e as concepções religiosas. Resgatando a saga do antigo Prometeu, fizeram dele um símbolo e desafiaram os deuses. Os critérios científicos seriam auto-suficientes para explicar e compreender o mundo, e, com base neles, também seria possível abranger a totalidade, emprestar sentido à vida de cada um e à da sociedade -em suma, organizar o aparente caos das sensações e das experiências fragmentadas, elaborando concepções globais em que cada ação e condição particulares pudessem ser iluminadas pela compreensão de um todo, do todo, em que estivessem inseridas.
Luz contra trevas
Os progressos e os sucessos científicos, incessantes, animaram os "modernos" a perseverar. A ciência, apoiada na razão, substituiria com vantagens as religiões, restituindo a humanidade a si mesma, conferindo-lhe autonomia, chamada a mobilizar, a seu modo, as imaginações. Alguns, mais inspirados, chegaram a propor a bela metáfora de um enfrentamento apocalíptico: a luta da luz contra as trevas. Abriu-se um tempo de revoluções, a começar pelo próprio sentido do termo, revolucionado (Hannah Arendt). Não se tratava mais de restaurar uma situação de injustiça e voltar às tradições de uma justiça violentada, como no caso das revoltas que se passavam no Antigo Regime, tão bem sintetizadas na fórmula chinesa: "Restaurar o mandato celeste". Mas de inaugurar tempos novos. Não apenas conferir sentido, mas, ousadia suprema, criar sentido. Karl Marx surge na esteira dessas ousadias desmesuradas. O fato de ter procurado desqualificar os que o antecederam como utópicos, conferindo à formosa palavra um sentido pejorativo, não retira dele os méritos de ter formulado uma visão grandiosa e categorias analíticas que resistiram à usura do tempo. Entretanto, já na época, suas construções suscitaram desconfianças e oposições. Sem contar uma certa ênfase, considerada excessiva, na dimensão econômica, o que impressionava era a ambição de tudo abarcar, formulando determinações que pareciam a muitos prisões conceituais, que poderiam levar a prisões propriamente ditas. Os discípulos, ao longo do século 20, exacerbaram esses traços. Construindo marxismos vários, de Moscou ao Caribe, radicalizaram propostas de uma totalidade que, em nome da humanidade, pareciam esquecer os seres humanos. Os casos particulares apenas se encaixavam nas "leis da História" e, quando não, como disse um famoso revolucionário, "pior para eles".
Fim do sonho
Em nome disso, dessas religiões "laicizadas", sucessivas gerações sucumbiram sofrendo, mas com o coração em paz. E, assim, de um pensamento audaz, revolucionário, emancipatório se fez uma "ideologia fria", mais capaz de mobilizar tanques e foguetes do que imaginações.
Quando o sonho terminou, porque há muito se transformara em pesadelo, houve de tudo um pouco: desde os que se recusaram a acordar, aferrados a modelos globalizantes que "tudo explicam", mas nada compreendem, até a tentação de um retorno puro e simples às religiões tradicionais. "Aggiornadas" ou radicalizadas em seus fundamentos, elas estavam prontas para acolher a decepção das utopias fracassadas: a Rússia é um caso exemplar do gênero. Outros, no entanto, dizendo-se pós-modernos, preferiram mergulhar no refúgio do particularismo, catando embaixo das mesas as "migalhas" da história (François Dosse).
Mas ninguém é obrigado a participar dessa falsa polarização. Há muito a literatura ensina que uma boa narração de uma história particular, além de poder ser bela, pode também ser universal. Em política também já não é recente o conselho de agir localmente, mas pensar globalmente. Em história, o mesmo acontece: casos particulares, bem estudados e conhecidos, podem oferecer pistas de valor universal, contribuindo inclusive para redefinir parâmetros gerais. Da mesma forma, as grandes narrativas serão sempre bem-vindas, desde que não façam desaparecer os tempos e os lugares particulares, que são "o quando" e "o onde" em que os seres humanos realmente vivem. Porque são eles, afinal de contas, que se trata de explicar e compreender.
Luz contra trevas
Os progressos e os sucessos científicos, incessantes, animaram os "modernos" a perseverar. A ciência, apoiada na razão, substituiria com vantagens as religiões, restituindo a humanidade a si mesma, conferindo-lhe autonomia, chamada a mobilizar, a seu modo, as imaginações. Alguns, mais inspirados, chegaram a propor a bela metáfora de um enfrentamento apocalíptico: a luta da luz contra as trevas. Abriu-se um tempo de revoluções, a começar pelo próprio sentido do termo, revolucionado (Hannah Arendt). Não se tratava mais de restaurar uma situação de injustiça e voltar às tradições de uma justiça violentada, como no caso das revoltas que se passavam no Antigo Regime, tão bem sintetizadas na fórmula chinesa: "Restaurar o mandato celeste". Mas de inaugurar tempos novos. Não apenas conferir sentido, mas, ousadia suprema, criar sentido. Karl Marx surge na esteira dessas ousadias desmesuradas. O fato de ter procurado desqualificar os que o antecederam como utópicos, conferindo à formosa palavra um sentido pejorativo, não retira dele os méritos de ter formulado uma visão grandiosa e categorias analíticas que resistiram à usura do tempo. Entretanto, já na época, suas construções suscitaram desconfianças e oposições. Sem contar uma certa ênfase, considerada excessiva, na dimensão econômica, o que impressionava era a ambição de tudo abarcar, formulando determinações que pareciam a muitos prisões conceituais, que poderiam levar a prisões propriamente ditas. Os discípulos, ao longo do século 20, exacerbaram esses traços. Construindo marxismos vários, de Moscou ao Caribe, radicalizaram propostas de uma totalidade que, em nome da humanidade, pareciam esquecer os seres humanos. Os casos particulares apenas se encaixavam nas "leis da História" e, quando não, como disse um famoso revolucionário, "pior para eles".
Fim do sonho
Em nome disso, dessas religiões "laicizadas", sucessivas gerações sucumbiram sofrendo, mas com o coração em paz. E, assim, de um pensamento audaz, revolucionário, emancipatório se fez uma "ideologia fria", mais capaz de mobilizar tanques e foguetes do que imaginações.
Quando o sonho terminou, porque há muito se transformara em pesadelo, houve de tudo um pouco: desde os que se recusaram a acordar, aferrados a modelos globalizantes que "tudo explicam", mas nada compreendem, até a tentação de um retorno puro e simples às religiões tradicionais. "Aggiornadas" ou radicalizadas em seus fundamentos, elas estavam prontas para acolher a decepção das utopias fracassadas: a Rússia é um caso exemplar do gênero. Outros, no entanto, dizendo-se pós-modernos, preferiram mergulhar no refúgio do particularismo, catando embaixo das mesas as "migalhas" da história (François Dosse).
Mas ninguém é obrigado a participar dessa falsa polarização. Há muito a literatura ensina que uma boa narração de uma história particular, além de poder ser bela, pode também ser universal. Em política também já não é recente o conselho de agir localmente, mas pensar globalmente. Em história, o mesmo acontece: casos particulares, bem estudados e conhecidos, podem oferecer pistas de valor universal, contribuindo inclusive para redefinir parâmetros gerais. Da mesma forma, as grandes narrativas serão sempre bem-vindas, desde que não façam desaparecer os tempos e os lugares particulares, que são "o quando" e "o onde" em que os seres humanos realmente vivem. Porque são eles, afinal de contas, que se trata de explicar e compreender.
Daniel Aarão Reis Filho é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros, "Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade" (Jorge Zahar).
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